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May 28, 2014

Lya Luft e a banalização da linguagem


Aulas de mediocridade
Lya Luft

            A velha história: a gente pensa que viu tudo, mas novamente um desses choques que me fazem pensar num engano, não pode ser, vou ler de novo. Era verdade: um projeto já em execução, financiado em parte pelo Ministério da Cultura, banca a edição de centenas de milhares de livros de autores clássicos brasileiros "facilitados", começando com Machado de Assis. Facilitados para quem? Para o leitor ignorante, é claro, despossuído da inteligência necessária ou da necessária educação para ler esse autor, o primeiro a sofrer tão abominável mutilação. Troca de vocábulos e talvez frases inteiras, em suma, reescrevem Machado; portanto, o que for lido não será ele. Inútil trabalho, gasto inútil, logro do leitor, o livro não será de Machado de Assis. 
             Volto, pois, ao meu velho tema: a mediocrização paulatina e permanente de tantos setores do Brasil. Desta vez, em lugar de elevar o nível do nosso ensino, em todos os graus, há um triste esforço para reduzir tudo ao mais elementar, ao mais primário. Alunos saem das primeiras séries muitas vezes sem saber ler nem escrever direito; assim passam pelo 2º grau, em que é preciso esforço para ser reprovado. Acho que nem se usa mais esse termo, para não traumatizar os alunos com bobagens como essa; aliás, eliminam-se punições inclusive nos casos mais sérios, reprovações, até mesmo notas. Tudo transcorre de mansinho, com alunos iludidos, pais e professores perplexos, e a ideia de que a vida deve ser um jardim de infância. 
             Alguns chegam à universidade via Enem, sempre confuso, via cotas de toda sorte que considero humilhantes e irreais, pois reforçam o preconceito: você tem preferência não por ter estudado, por ter preparo, mas por sua raça, sua origem, seu nível econômico. Por ter lido um falso autor brasileiro clássico? 
             Jovens universitários não conhecem ortografia, e pior: não conseguem exprimir com simplicidade e correção seus pensamentos porque em geral nem os têm. Desabituados à argumentação e ao questionamento, ao esforço por aprender, a horas e horas em cima dos livros (desabituados de livros, aliás) ou de reais pesquisas na internet quando têm computador (não se iludam quanto à posse generalizada de notebooks), jovens entram e saem da universidade com quase igual despreparo. Os bons alunos se queixam do baixo nível, da falta de professores, de material, de instalações adequadas. Os outros, sem culpa alguma pelos erros do sistema, acabam exercendo sua profissão do jeito que conseguem. Doentes mal diagnosticados e erradamente tratados, construções rachadas e erodidas, estradas mal asfaltadas, pesquisas frustradas, e frustração dos outros que, por esforço e muito estudo, procuram níveis de excelência para si e para o país. 
             É impossível uma pessoa simples ouvir e apreciar um concerto de música clássica? Engano. Pode não conhecer a biografia do compositor, o uso dos instrumentos, a elaboração das partituras, mas a música a atingirá porque os simples têm emoções, delicadeza, sentimento e gosto pelo belo. Pessoas simples, ou jovens, até crianças, conseguem de maneira surpreendente curtir bons quadros e esculturas, mesmo sem ser especialistas em artes. Não é preciso conhecer teoria para enxergar beleza, harmonia ou qualquer sugestão de um objeto de arte: a arte pode ser democrática sem ser distorcida ou facilitada. Para ler um romance de Machado, não é preciso ser um gênio nem é necessário traduzir os termos ou frases mais difíceis para um linguajar coloquial: basta colocar no fim do livro, como já vi ser feito, um conjunto de verbetes explicando os termos menos usados, como num minúsculo dicionário. O leitor aprende, cresce, instrui-se, e, mesmo que não vire leitor dos clássicos, terá uma ideia do que o país já produziu nesse sentido. 
             Mas não damos ao nosso aluno esse privilégio: se for possível, se tal projeto já aprovado e financiado pelo Ministério da Cultura se afirmar, o culto à mediocridade, que impera, vai ter feito mais um gol de vitória. Mas, afinal, é a Copa.

Lya Luft é escritora, colunista da Revista Veja. O artigo acima foi publicado na Revista Veja, edição 2374, de 21 de maio de 2014.

3 comments:

Anonymous said...
This comment has been removed by a blog administrator.
Unknown said...

Parabéns pelo artigo. Infelizmente é a realidade. É mais fácil "inserir" a população por meio de produtos que não exijam grande capacidade de formação do que investir para que mais pessoas exijtiam e sejam capazes de melhores produtos, em todos sentidos, e não necessariamente mercadológicos.

Rev. Ageu Magalhães said...

Caro irmão Anônimo, preciso do seu e-mail para lhe dar uma resposta. Escreva para mim no revageu@yahoo.com.br

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