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December 30, 2015

Uma Análise Teológica da gravura “Mary and Eve” de Grace Remington


A gravura
A gravura “Mary and Eve” (Maria e Eva) foi feita por Grace Remington, freira da Abadia Mississipi em Iowa – EUA e é comercializada, como cartão de Natal, no site da Abadia.

O desenho apresenta como moldura a representação de uma árvore formando um portal. O portal, além de acompanhar a forma estabelecida pelas silhuetas de Eva e Maria, é muito utilizado em pinturas católicas relacionadas a santos. O fundo da cena é limpo, preenchido apenas pela cor dourada. A base do desenho é piso de terra. A árvore, repleta de frutos, o chão de terra e o fundo dourado parecem apontar para o primeiro paraíso, o Jardim do Éden.

Mais ao centro da gravura, Eva e Maria. Eva está olhando para o centro do desenho, a barriga de Maria, onde está o Redentor. Eva está nua, coberta apenas por seus cabelos que adquirem forma de vestido. Sua mão direita segura um fruto parecido com maçã, clara referência ao fruto proibido que ela comeu e passou ao seu marido, Adão. Suas pernas estão presas pela serpente, referência possível à escravidão do pecado, resultante da queda. À direita da cena, Maria, vestida de branco e com um véu azul. O branco aponta para sua pureza e o azul para sua realeza, visto que é considerada eternamente virgem e chamada Rainha do Céu, no catolicismo romano. Sua mão está sobre a barriga, onde está seu filho Jesus.

O movimento e as emoções da gravura se localizam nos olhares e nas mãos das personagens. Eva, cabisbaixa, com rosto corado de vergonha e olhar triste, segura na mão direita o fruto do pecado e, com a outra mão, segura a mão de Maria, sobre a barriga onde está o Redentor. Maria, com olhar de misericórdia em direção a Eva, com a mão direita acaricia seu rosto e com a esquerda acaricia a própria barriga. Na base do desenho, Maria pisa a cabeça da serpente. A serpente está com a língua para fora, indicando sua morte. Os sentimentos expressos na gravura são complementados pelo poema da freira Grace:

Minha mãe, minha filha, doadora da vida, Eva,
Não se envergonhe, não se aflija.
As coisas antigas já se passaram,
Nosso Deus trouxe a nós um Novo Dia.
Veja, eu estou com a Criança,
Por meio de quem tudo será reconciliado.
Oh Eva! Minha irmã, minha amiga,
Nós nos alegraremos juntas
Para sempre
Vida sem fim.

A teologia
Via de regra, toda forma de arte tem uma mensagem e, por vezes, a mensagem revela a cosmovisão e os pressupostos do autor. A gravura analisada foi feita por uma freira e, conscientemente ou não, acaba revelando 2 aspectos importantes da teologia católica romana:

1. Maria esmagando a cabeça da serpente
Logo após a entrada do pecado no mundo, como parte do castigo à serpente, Deus anunciou: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” (Gn 3.15)

Está claro no texto que aquele que esmagará a cabeça da serpente será o descendente da mulher. Como a serpente não estava ali apenas como um animal, mas, principalmente, como instrumento de Satanás (Ap 12.9), os estudiosos da Bíblia entendem que este versículo é o primeiro anúncio da vitória de Jesus, o descendente, sobre o diabo. Por isso, Gênesis 3.15 é chamado de o “Protoevangelho”, primeiro Evangelho.

A Igreja Católica Apostólica Romana, em um esforço para incluir Maria no plano de salvação, interpreta este versículo atribuindo à mãe de Jesus a missão de esmagar a cabeça da serpente. Veja abaixo diversos trechos de documentos católicos sustentando esta interpretação:

“5. Citai algumas dessas promessas. 1º A que Deus mesmo fez nestas palavras do Gênesis (III, 15), dirigidas à serpente, que tentara e seduzira a mãe do gênero humano: ‘Porei inimizade entre ti e a mulher, entre sua raça e a tua, e Ela te esmagará a cabeça (...) 6. Qual é a mulher anunciada na primeira destas promessas? Todos os intérpretes da Escritura são unânimes em reconhecer nesta gloriosa mulher a Sma. e Imaculada Virgem Maria, escolhida de Deus para reparar a falta de Eva, reconciliar o céu com a terra e ser a libertadora do gênero humano.” Devoção à SS.ma Virgem Maria, Ensinada à Mocidade, parágrafo 5 e 6.

“Mas a humilde Maria será sempre vitoriosa na luta contra esse orgulhoso, e tão grande será a vitória final que Ela chegará ao ponto de esmagar-lhe a cabeça, sede de todo o orgulho. Ela descobrirá sempre sua malícia de serpente, desvendará suas tramas infernais, desfará seus conselhos diabólicos, e até o fim dos tempos garantirá seus fiéis servidores contra as garras de tão cruel inimigo". Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, parágrafo 54.

“10 - Explique a primeira promessa de Nossa Senhora. A "mulher" anunciada é Maria Imaculada; a "descendência", ou posteridade da mulher, é Jesus Cristo, seu Unigênito Filho, e em Jesus Cristo todos os cristãos. A serpente é o demônio, e a raça da serpente são os que de tal modo cometem o pecado que se identificam com ele: ‘Quem comete o pecado é do demônio" (I Jo. III, 8). Maria esmaga a cabeça da serpente, isto é, vence o demônio: primeiro e principalmente por seu Filho Jesus, vencedor do demônio e do pecado; segundo, pela sua Imaculada Conceição. Deus estabeleceu, assim, ‘inimizades’ perpétuas e irreconciliáveis entre Maria e o demônio, entre a posteridade de Maria e a do demônio. Os hereges de todos os tempos compartilharam dessa inimizade, do lado do demônio, atacando o culto a Maria, destruindo suas imagens e santuários, perseguindo seus devotos.” Catecismo de Nossa Senhora, Lição I.

“37 - Esta verdade está, de fato, contida no Depósito da Revelação? 1) Na Sagrada Escritura: a) ‘Porei inimizades entre ti e a mulher; entre a tua descendência e a descendência dela (...) ela te esmagará a cabeça’ (Gen 3, 15). Conforme a doutrina constante da Igreja, a ‘mulher’ de que fala o Gênesis é Maria, Mãe de Jesus, sua ‘descendência’. Nessa passagem são prenunciadas a comum inimizade e comum vitória total do Redentor e de sua Mãe Santíssima sobre o demônio. Ora, essas ‘inimizades’ e essa vitória (‘Ela te esmagará a cabeça’) supõem, não somente em Jesus, mas também em Maria, uma total ausência de pecado, mesmo original.” Catecismo de Nossa Senhora, Lição IV.

“52. Uma única inimizade Deus promoveu e estabeleceu, inimizade irreconciliável, que não só há de durar, mas aumentar até ao fim: a inimizade entre Maria, sua digna Mãe, e o demônio; entre os filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e sequazes de Lúcifer; de modo que Maria é a mais terrível inimiga que Deus armou contra o demônio. Ele lhe deu até, desde o paraíso, tanto ódio a esse amaldiçoado inimigo de Deus, tanta clarividência para descobrira malícia desta velha serpente, tanta força para vencer, esmagar e aniquilar esse ímpio orgulhoso, que o temor que Maria inspira ao demônio é maior que o que lhe inspiram todos os anjos e homens e, em certo sentido, o próprio Deus.” Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem Maria, São Luis Maria Grignion de Montfort, parágrafo 52.

“Mas a humilde Maria será sempre vitoriosa na luta contra esse orgulhoso, e tão grande será a vitória final que ela chegará ao ponto de esmagar-lhe a cabeça, sede de todo o orgulho.” Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem Maria, São Luís Maria Grignion de Montfort, parágrafo 54.

Fruto desta teologia equivocada, dezenas de imagens foram construídas no decorrer dos séculos com a figura de Maria esmagando a cabeça de uma serpente. Veja a seguir:


















2. Maria como a nova Eva
A Palavra de Deus ensina em Romanos 5.12-21 e 1 Coríntios 15.45 que Jesus Cristo é o segundo Adão. A Mariolatria romanista, sem qualquer evidência bíblica, passou a atribuir a Maria o título de “Nova Eva”. Veja abaixo alguns trechos de documentos católicos ensinando isso:

“Como diz Santo Irineu, ‘obedecendo, se fez causa de salvação tanto para si como para todo o gênero humano’. Do mesmo modo, não poucos antigos Padres dizem com ele: ‘O nó da desobediência de Eva foi desfeito pela obediência de Maria; o que a virgem Eva ligou pela incredulidade a virgem Maria desligou pela fé’. Comparando Maria com Eva, chamam Maria de ‘mãe dos viventes’ e com frequência afirmam: ‘Veio a morte por Eva e a vida por Maria”. Catecismo da Igreja Católica, parágrafo 494.

“QUINTA RAZÃO: Permitis a uma mulher cooperar na regeneração, como a primeira mulher, Eva, tinha cooperado na perdição da humanidade. Eva apresentará o fruto da morte, Maria apresentará o fruto de vida. Eva foi a causa das lágrimas. Maria será, tal um sorriso do céu, a causa da nossa alegria. Eva cooperou na nossa separação de Deus; Maria será o traço de união que nos liga a Ele. Maria é a segunda Eva, mas de ofício radicalmente oposto.” Maria e a Eucaristia, P. Júlio Maria, p. 128.

“Era conveniente à divina Sabedoria restituir ao mundo, por uma Virgem: Maria, o que outra Virgem: Eva, lhe havia tirado. Eva, a primeira Virgem e a mãe dos viventes, segundo a natureza, havia perdido para ela e para todos os descendentes o direito de comer da árvore da vida. Deus quis, depois da primeira Eva pecadora, a Eva inocente e pura: Maria, para restituir aos homens, na ordem da graça, o direito de comer da verdadeira árvore da vida, que é Jesus Cristo.”  Maria e a Eucaristia, P. Júlio Maria, p. 244.

“O novo Adão e a nova Eva, que são o Cristo e a Virgem dolorosa, vinham reparar o mal causado pelos primeiros.” Maria e a Eucaristia, P. Júlio Maria, p. 424.

“Pela obediência ela tornou-se causa de salvação, para si mesma e para todo o gênero humano. O laço da desobediência de Eva foi desfeito pela obediência de Maria. O que Eva atou com sua incredulidade, a Virgem Maria desatou pela fé.” S. Irineu, apud Antônio Mesquita Galvão, O Silêncio de Maria, p. 2.

“O que Eva condenou e perdeu pela desobediência, salvou-o Maria pela obediência. Eva, obedecendo à serpente, perdeu consigo todos os seus filhos e os entregou ao poder infernal; Maria, por sua perfeita fidelidade a Deus, salvou consigo todos os seus filhos e servos e os consagrou a Deus.” Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem Maria, São Luis Maria Grignion de Montfort, parágrafo 53.

“De resto, numerosos Padres e Doutores da Igreja vêem na mulher anunciada no “proto-evangelho” a mãe de Cristo, Maria, como “nova Eva”. Catecismo da Igreja Católica, parágrafo 411.

“Ao final deste missão do Espírito, Maria torna-se a ‘Mulher”, nova Eva, ‘mãe dos viventes’, Mãe do ‘Cristo total”. Catecismo da Igreja Católica, parágrafo 726.

“E é na hora da nova Aliança, ao pé da Cruz, que Maria é ouvida como a Mulher, a nova Eva, a verdadeira ‘mãe dos vivos” Catecismo da Igreja Católica, parágrafo 2618.

Sendo assim, uma gravura com Eva e Maria representadas não é algo novo na história. Veja abaixo 3 exemplos:




Conclusão
A gravura da freira Grace RemingtonMary and Eve” possui beleza artística e gera sentimentos de graça e misericórdia. Todavia, é impossível não considerar a teologia mariólatra por detrás do desenho, de exaltação a Maria como “Nova Eva”, aquela que reparou os erros da primeira, e de “Rainha dos céus”, aquela que esmagou a cabeça da serpente. Como escreveu Paul Romane Musculus, “A respeito da arte, bem como, a respeito de toda questão submissa à Igreja, a reflexão teológica é necessária. Para um reformado, a sua única referência, sobre qualquer assunto, será sempre a Palavra de Deus.” (La Prière des Mains: L'Eglise Reformee et L'Art, p.191).

10 comments:

Ewerton B. Tokashiki said...

Meu nobre Rev Ageu

O seu texto apresenta uma fina apreciação crítica. Revela conhecimento histórico e teólogico, bem como do contexto da autora e detalhes omitidos na gravura [como o poema]. As ilustrações somam como um alerta aos incautos e afirma uma advertência para o risco de se encantar pela beleza do cantos das sereias sem atentar para o real perigo.

Parabéns, e Deus continue usando-o com conhecimento, discernimento e coerência.

ABSTRAÇÕES DE UM PASTOR said...

Reverendo Ageu, apreciei muito o seu texto. Bastante lúcido, teológico e pedagógico. Deus o abençoe ricamente e que tenha um 2016 repleto de bênçãos na família. De seu irmão e conservo, Afonso.

folton said...

Belo texto Ageu. Deus continue a te (e aos teus) dar graça neste ano novo.
ab
Fôlton

Esli Soares said...

Excelente, excelente.

Anonymous said...

Louvo a Deus, nao apenas porque este artigo de comprovada lucidez e excelencia trouxe `a luz as fraquezas da gravura em questao, mas sobretudo porque ele nos encoraja a submeter as artes ao crivo da Palavra de Deus. A teologia reformada representa uma cosmovisao que funciona como lentes de interpretacao do mundo ao nosso redor.

folton said...

Ageu, andei pensando sobre o assunto e fiquei assustado que algum protestante pense em comparar Eva e Maria.

A Bíblia fala de Jesus como o segundo Adão, mas Maria *não pode ser a segunda Eva*, pois é a mãe de nosso Senhor! Se quizerem um símbolo a segunda Eva é a Igreja. A Igreja é a noiva do Cordeiro.

Ab
Fôlton

Anonymous said...

Como católico sou abrigado a dizer que esta é uma das mais belas apresentações Mariológica que já vi.
Um belo Estudo sobre a Santíssima Virgem.
Salve Maria.

Ruy leandro said...

Excelente texto. Na verdade, no catolicismo, Maria tem mais representatividade que o próprio Deus. Eles alegam que não adoram, mas veneram Maria...isso não passa de um simples jogo de palavras para não afirmarem que são adoradores exclusivos de Maria.

Anonymous said...

Excelente texto! Também fiquei muito impressionada com um livro chamado "As Glórias de Maria" onde o escritor, um certo Santo Afonso Maria de Ligório, onde Maria é considerada onipotente não uma vez, mas algumas vezes. Fico muito triste quando alguns católicos nos acusam de odiar Maria. Eu a amo como amo meus irmãos de todas as épocas. Acho que a amo até mais um pouco por ter ela sido mãe de Jesus, mas jamais poderia atribuir a ela o que lhe é atribuído erroneamente, muito menos atributos incomunicáveis de Deus.

João Victor Burti said...

Excelente texto. Sou um desses protestantes que tinham se encantado com a beleza e doçura dessa arte. Não havia me atentado ao background idólatra à Maria.

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