REAL, BOBINA[i] OU VIRTUALMENTE REAL?
Em dezembro de 1993 um jovem estudante universitário da
Virgínia cochilou sobre o volante de seu carro enquanto dirigia pela Rodovia
17. Ele desviou em direção a um caminhão e morreu instantaneamente. De quem era
a culpa? Do álcool? Drogas? Pressão do trabalho? Problemas de saúde? Nada
disso. Ele simplesmente ficou sem dormir por quase uma semana em sua paixão por
entrar no mundo da “AmberMUSH”, uma rede de computadores multiuso dedicada aos
jogos de interpretação de papeis[ii].
Na vida real o jovem da Virgínia era estranho, tímido, com
suas notas do ensino médio nada espetaculares. Mas online era diferente, como qualquer outro poderia ser – uma
desejável porém traiçoeira, manipuladora mulher das ruas chamada Sabbath.
Sempre um alvo de provocações e intimidações enquanto crescia, ele tornou-se um
consumado “garoto dos jogos”, para quem estar online era um escape da própria existência. Então, como os
familiares e amigos disseram depois, o mundo da fantasia e das interpretações
tornou-se tão real que ele quase desistiu da vida real e mudou-se para o cyberespaço.
Finalmente, a última fase tornou-se a última fase.
PESSOA-A-PESSOA NÃO É
CARA-A-CARA
Não podemos fazer grandes generalizações de uma tragédia
pessoal como esta. Mas um tema recorrente emergiu das muitas respostas à
notícia de sua morte. Parte do apelo da cybercomunicação é que ela é de
pessoa-a-pessoa, mas não cara-a-cara. Embora sua capacidade coletiva de ilusão
exija muitas habilidades de interpretação de papeis e regras bem desenvolvidas
de conduta online, dá licença para a
livre expressão da imaginação e emoção, enquanto preserva a privacidade.
O desenvolvedor do programa “AmberMUSH” explicou seu apelo:
tais sistemas dão aos usuários “uma chance de pisar fora das fronteiras normais
dos limites sociais...Idade, gênero, pano de fundo econômico, preferência
sexual, contexto étnico e crenças políticas são completamente
irrelevantes...Você pode confiar em estranhos simpáticos com a confiança do
completo anonimato. Você pode questionar coisas a que foi ensinado sem ser
tratado como algum tipo de excêntrico. Pode ouvir opiniões de tipos que não
conheceria de outro modo, pessoas de fora da sua localidade geográfica,
envolvidas em trabalhos ou passatempos dos quais você nunca ouviu falar.”
Preocupações sobre o cyberespaço e a nova informação
super-rápida estão cercados por um redemoinho de propaganda exagerada e
ansiedade, afirmações utópicas ingênuas e premonições obscuras de pessoas
avessas à tecnologia. Mas uma coisa é inegável: os últimos desenvolvimentos em
tecnologia da comunicação têm implicações desafiadoras à nossa experiência e
entendimento da verdade e da personalidade humana. Como tais eles representam
outra pressão moderna poderosa pesando sobre a mente cristã.
Se um passado serve como algum guia, o resultado da revolução
do computador provavelmente estará em algum lugar entre os otimistas e os
pessimistas. No presente momento os cyberentusiastas estão com toda a força,
com o Vice-Presidente Gore em baixa. Estas novas tecnologias da comunicação
como vídeo-telefones, dizem, irão ajudar a “consertar a família.” Os novos
estilos de vida que surgem, como o teletrabalho, irão “restaurar o sentido perdido
de comunidade.” As novas ferramentas da comunicação, eles nos anunciam com
impassível seriedade, farão da vida humana mais humana.
É difícil, contudo, ficar impressionado. A revolução da
televisão foi anunciada com a mesma fanfarra. Os comerciais de televisão, como
foi predito nos anos 40, “fortaleceriam os laços familiares” e fariam com que
as “cidades se tornassem desnecessárias.” Permitiriam que a alta cultura e as
artes permeassem o todo da sociedade. Promoveriam um povo democrático com uma
“elevação cultural” além do alcance de qualquer pessoa no passado abaixo da
elite. Acima de tudo, com tem sido dito sobre novas tecnologias há 200 anos,
tornariam possível o sonho mágico da “sociedade do lazer.”
Aparelhos de TV interativos, filmes sob demanda, vídeo games,
base de dados, programação educacional, compras de casa, serviços de banco
telefônicos, realidade virtual de todos os tipos – os cybergurus jorram todas
as maravilhas dos novos serviços de informação para o povo comum. Mas é difícil
escapar de algumas suspeitas fundamentais – de que teremos ainda menos lazer do
que antes, de que muitas pessoas terão uma ansiedade ainda maior devido à alta
complexidade, e de que o nível popular de pedidos (por alguma vaga de emprego
ou estudo) testemunhará mais lixo cultural do que excelência.
Em resumo, o que o equipamento torna possível, o programa
tornará real. E os sinais são de que programas comercialmente viáveis não
trarão – para dizer caridosamente – nenhum aumento na excelência do nível
artístico e intelectual do que a mediocridade da televisão durante os últimos
cinquenta anos. A união frutífera entre alta tecnologia e a podridão da
“cultura idiota” não parece que verá um divórcio tão cedo.
O ESPERANTO DE NOSSOS
TEMPOS
Talvez os desafios mais difíceis à mente cristã venham das
ferramentas e estilos da “realidade virtual.” Antes restrita a jogos de
entretenimento, as tecnologias de realidade virtual constituirão uma nova forma
de experiência humana – “um pulo ao espaço eletrônico”, como seus proponentes
modestamente alegam.
A tecnologia da realidade virtual (ou RV) ainda está em um
estágio rudimentar, mas os seus apaixonados ficam sem ar diante de suas
capacidades divinas – a verossimilhança da simulação, a total imersão do
meio-ambiente, e a quase-onisciência do “hipertexto” e seu potencial para
interpretar qualquer texto. Se a tradição medieval tratava-se sobre o
pensamento humano reduzido ao raciocínio lógico, a comunicação via modem é a
experiência e o conhecimento humanos reduzidos ao processamento de informação.
O cálculo da informação digital é o esperanto de nossos tempos – ou o mais
próximo que podemos chegar dele. Nós podemos até não falar a mesma língua, mas
um cálculo universal pode trazer todas as línguas a uma única e compartilhada
base de dados.
Como um crítico afirmou, o conhecimento humano se aproxima da
“cognição intuitiva e onisciente da divindade.” Nenhum desdobramento temporal,
nenhum passo linear, nenhum atraso – as últimas tecnologias trazem até nós o
limite do tudo-ao-mesmo-tempo do instante, uma informação total com uma
simulação semelhante à dos deuses.
Seria a nova cybertecnologia simplesmente uma ferramenta ou
uma ameaça à nossa humanidade? Seria o nosso moderno caso de amor com
computadores meramente uma questão de fascinação intelectual? Ou seria, como
alguns têm dito, erótica – uma procura profundamente espiritual e sensual por
um lar para nossa mente e coração? Representaria o cyberespaço um avanço da
mente ao custo do corpo – até ao ponto onde o corpo é opcional – até chegar a
um novo gnosticismo? Seria importante o fato de que a “telepresença” mediada
pela máquina e a “comunidade online” sejam desprovidas do imediatismo e da responsabilidade
do compartilhamento linear cara-a-cara?
Somente o tempo responderá a estas questões, mas minha
principal preocupação pelo impacto do cyberespaço no pensamento cristão é sobre
os temas da verdade e da realidade. Tecnicamente, “realidade virtual” significa
um evento ou experiência que é real em efeito mas não de fato. Realidade virtual,
em outras palavras, é um mundo tecnológico humanamente construído que combina
duas coisas: um alto nível de realismo em simulação e um alto nível de
interação que resulta em uma total imersão. Assim, o termo “realidade virtual”
foi escolhido pelos seus inventores – e evitado pelos seus críticos – devido a
sua promessa metafísica poderosa. Realidade virtual é o Santo Graal do poder
criativo da tecnologia.
“Isso é real ou é uma bobina?”. Esta pergunta, de uma geração
atrás, tinha a intenção de ajudar crianças a distinguir fatos da fantasia na
televisão e, assim, torná-las “alfabetizadas” em assistir à televisão. O poder
da realidade virtual suspende todas estas questões e leva-nos a outro mundo.
Realidade virtual, hoje, ainda está em um nível cru, mas a promessa de seu
progresso leva-nos a um nível mais alto – próximo ao que Richard Wagner tinha
em mente com seu conceito de “obra de arte total” no Festival Bayreuth.
Quando Wagner terminou sua última ópera, Parsifal, não a via
simplesmente como ópera, ou música, teatro ou arte – e certamente não como
“entretenimento.” Ele rivalizava com a ala do alto-catolicismo e sua missa. Ele
estava criando uma realidade artificial que pudesse se tornar uma experiência
total, que transformasse a realidade e a experiência ordinárias. O propósito
final era nada menos que religioso.
A realidade virtual de hoje é um grito distante da alta arte
de Wagner – graças a Deus, pois os comícios de Hitler em Nuremberg imitavam
Wagner tão astutamente quanto qualquer um. Sem dúvida a realidade virtual, no
futuro, alcançará suas próprias simulações de Bayreuth. Sem dúvida o caminho
será bagunçado com simulações mais toscas, mais triviais, e menos pretensiosas.
Mas a tendência geral é provavelmente a de minar o status da realidade e da
verdade. Fantasias pessoais, estórias, romances e filmes já nos movem de uma
dimensão da realidade a outra – e de maneira muito apropriada. Mas a mudança
representada pela realidade virtual é um salto quântico à artificialidade e ao
relativismo, um grande desafio da finitude e decadência da realidade como
observadas na visão cristã do mundo.
MANTENDO VIRTUAL A
REALIDADE VIRTUAL
Como podemos manter virtual a realidade virtual? Seria
possível que as tecnologias do amanhã nos permitirão escapar da coleira da
realidade mundana o suficiente para criar a ilusão de uma realidade além do que
é real? O cybergnosticismo seria o resultado de tais voos imaginários, pois a
experiência última de RV do futuro terá como objetivo ser espiritualmente
sublime. Sem dúvida, podemos esperar que as sujas, mas altamente imaginativas
seções de comércio cristão produzam não apenas “A Batalha do Armagedon em RV”
mas também “Conversões Virtuais”, “Tempos de Quietude Virtuais”, “Experiências
Místicas Virtuais”, e “Grupos de Recuperação Virtuais online”.
O principal objetivo do desenvolvimento da realidade virtual
traz profundas questões filosóficas e religiosas. Como Michael Heim alerta,
“Uma proliferação irrestrita de mundos clamam por sanidade, por conexão com a
realidade, por alicerce metafísico.” Mas o objetivo menor terá o maior impacto.
A visão bíblica da realidade é gloriosamente realística – vida humana das
cinzas vivida na forma de sangue, suor e lágrimas.
Já podemos esperar pelos cybercorpos da realidade virtual do
amanhã serem capazes de sofrer as desordens esperadas que são os avanços no
fuso horário de hoje e as doenças de simulador. A realidade cristã será, então,
o último melhor conferidor de realidade de sistemas de realidade virtual. Mas
isto se os cristãos ainda forem moldados pela verdade decisivamente diferente
na qual acreditamos. O reino mágico do “cristianismo virtual” pode ter um
mercado, mas não tem futuro.
O ALARME DE INCÊNDIO E
O INCENDIÁRIO
Como enfatizei no início da Segunda Parte, esta breve
pesquisa sobre oito pressões culturais não é exaustiva. Muitas outras pressões
poderiam ser citadas – por exemplo, a influência da psicologia em um nível
popular (o “triunfo da terapia” de Philip Rieff). Ninguém deveria formar
conclusões falsas destes alertas.
Uma falsa conclusão é que eu preciso me opor a qualquer ou a
todas estas coisas – televisão, comerciais, estilo, programas de auditório,
conversas sobre gerações, realidade virtual, pós-modernismo, psicologia e assim
por diante. Como Marshall McLuhan dizia, “Me sinto como um homem que dispara o
alarme de incêndio, mas acaba sendo acusado de incêndio culposo.” As descrições
de McLuhan dos efeitos da tecnologia, em outras palavras, inclinaram pessoas –
erradamente – a tomá-lo como inimigo das coisas que descrevia. A mesma coisa
acontece aqui. Eu me oponho apenas aos efeitos negativos destas coisas. A
modernidade, contudo, é uma espada de dois gumes e eu poderia facilmente
escrever sobre seus benefícios em vez de seus custos.
Uma segunda falsa conclusão é que qualquer crítico destas
tendências, eu incluso, poderia facilmente resistir às próprias tendências.
Nunca é tão fácil. Mesmo Norman Mailer, lamentando o destino de romances
sérios, admitiu recentemente que “muitos poucos” de seus nove filhos “são mais
engajados com meu trabalho do que o são com as pessoas da televisão.” Ele
confessou que tem se rebaixado ao suborno a seu filho mais novo, para que leia
dez romances, ao prometer duas horas diárias de televisão se ele o fizer – algo
não satisfatoriamente bem sucedido.
Uma terceira falsa conclusão é que estas pressões são
abstratas e sem consequência – muito intelectuais e remotas para fazer qualquer
diferença. Longe disso. Nós já temos examinado o escândalo e o pecado – a
ineficácia evangélica na vida pública, por exemplo. Deixe-me adicionar aqui uma
outra consequência: a crescente degradação do pensamento cristão à especulação,
heresia, blasfêmia e o comportamento estranho.
Muitos evangélicos ficaram chocados e enfurecidos com o
evento “Re-Imaginando”, uma “Conferência Teológica Global de Mulheres”, que
aconteceu em Minneapolis em 1993. Apresentações ridicularizando a ortodoxia e
negando a expiação de Jesus Cristo, aplausos efusivos a lésbicas, um culto com
leite e mel à deusa Sofia – o que sobrou do “protestantismo principal”
ostentava algumas das heresias mais vis já criadas na igreja de Cristo em dois
mil anos.
Ainda assim, o que muitos evangélicos falham em reconhecer e
protestar é um movimento similar que cresce em círculos conservadores. Ouça
atenciosamente aos pregadores da Fé[iii].
A teologia, política e estilos culturais são diferentes, mas a heresia,
blasfêmia e estranheza são as mesmas. O paganismo está crescendo em nossas
igrejas. O gnosticismo especulativo ressurge em nossos círculos. Um horror de
grande escuridão está brotando em nossa própria casa. Ainda assim, julgando
pela maneira como a heresia é publicada e anunciada por respeitadas editoras
evangélicas e assistida e lida por milhões de bons espectadores e leitores
evangélicos, nós, evangélicos, amamos que seja assim. E isto é apenas o começo
da degradação do pensamento evangélico que está chegando, a menos que
experimentemos uma reforma.
Nosso trabalho, como seguidores de Cristo, não é fácil, mas é
claro: o desafio, nas palavras de Paulo, é o de “não nos conformarmos com este
presente século, mas sermos transformados pela renovação da nossa mente.” As
correntes são velozes e as pressões são grandes, mas um foco no negativo está
longe de ser algo negativo. É o primeiro passo para o mais positivo de todos,
isto é, ter a mente de Cristo.
_______
Capítulo 16 – “Real, Reel, or Virtually Real?” – do livro “Fit
Bodies, Fat Minds: Why Evangelicals Don’t Think and What to Do About it.” de Os
Guinness, Hourglass Books, 1994, traduzido
por Renan Santos Lima.
[i]
Originalmente, o autor faz um jogo de palavras com a pronúncia de “real” e
“reel” (bobina), muito semelhantes entre si. O uso do termo será explicado a
seguir.
[ii]
Conhecidos como jogos RPG: “role-playing games”.
[iii]
O autor refere-se ao movimento neopentecostal Palavra da Fé, proponente da
Teologia da Prosperidade.
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