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June 24, 2020

Cybergnosticismo - Os Guinness

REAL, BOBINA[i] OU VIRTUALMENTE REAL?




Em dezembro de 1993 um jovem estudante universitário da Virgínia cochilou sobre o volante de seu carro enquanto dirigia pela Rodovia 17. Ele desviou em direção a um caminhão e morreu instantaneamente. De quem era a culpa? Do álcool? Drogas? Pressão do trabalho? Problemas de saúde? Nada disso. Ele simplesmente ficou sem dormir por quase uma semana em sua paixão por entrar no mundo da “AmberMUSH”, uma rede de computadores multiuso dedicada aos jogos de interpretação de papeis[ii].

Na vida real o jovem da Virgínia era estranho, tímido, com suas notas do ensino médio nada espetaculares. Mas online era diferente, como qualquer outro poderia ser – uma desejável porém traiçoeira, manipuladora mulher das ruas chamada Sabbath. Sempre um alvo de provocações e intimidações enquanto crescia, ele tornou-se um consumado “garoto dos jogos”, para quem estar online era um escape da própria existência. Então, como os familiares e amigos disseram depois, o mundo da fantasia e das interpretações tornou-se tão real que ele quase desistiu da vida real e mudou-se para o cyberespaço. Finalmente, a última fase tornou-se a última fase.

PESSOA-A-PESSOA NÃO É CARA-A-CARA
Não podemos fazer grandes generalizações de uma tragédia pessoal como esta. Mas um tema recorrente emergiu das muitas respostas à notícia de sua morte. Parte do apelo da cybercomunicação é que ela é de pessoa-a-pessoa, mas não cara-a-cara. Embora sua capacidade coletiva de ilusão exija muitas habilidades de interpretação de papeis e regras bem desenvolvidas de conduta online, dá licença para a livre expressão da imaginação e emoção, enquanto preserva a privacidade.

O desenvolvedor do programa “AmberMUSH” explicou seu apelo: tais sistemas dão aos usuários “uma chance de pisar fora das fronteiras normais dos limites sociais...Idade, gênero, pano de fundo econômico, preferência sexual, contexto étnico e crenças políticas são completamente irrelevantes...Você pode confiar em estranhos simpáticos com a confiança do completo anonimato. Você pode questionar coisas a que foi ensinado sem ser tratado como algum tipo de excêntrico. Pode ouvir opiniões de tipos que não conheceria de outro modo, pessoas de fora da sua localidade geográfica, envolvidas em trabalhos ou passatempos dos quais você nunca ouviu falar.”

Preocupações sobre o cyberespaço e a nova informação super-rápida estão cercados por um redemoinho de propaganda exagerada e ansiedade, afirmações utópicas ingênuas e premonições obscuras de pessoas avessas à tecnologia. Mas uma coisa é inegável: os últimos desenvolvimentos em tecnologia da comunicação têm implicações desafiadoras à nossa experiência e entendimento da verdade e da personalidade humana. Como tais eles representam outra pressão moderna poderosa pesando sobre a mente cristã.

Se um passado serve como algum guia, o resultado da revolução do computador provavelmente estará em algum lugar entre os otimistas e os pessimistas. No presente momento os cyberentusiastas estão com toda a força, com o Vice-Presidente Gore em baixa. Estas novas tecnologias da comunicação como vídeo-telefones, dizem, irão ajudar a “consertar a família.” Os novos estilos de vida que surgem, como o teletrabalho, irão “restaurar o sentido perdido de comunidade.” As novas ferramentas da comunicação, eles nos anunciam com impassível seriedade, farão da vida humana mais humana.

É difícil, contudo, ficar impressionado. A revolução da televisão foi anunciada com a mesma fanfarra. Os comerciais de televisão, como foi predito nos anos 40, “fortaleceriam os laços familiares” e fariam com que as “cidades se tornassem desnecessárias.” Permitiriam que a alta cultura e as artes permeassem o todo da sociedade. Promoveriam um povo democrático com uma “elevação cultural” além do alcance de qualquer pessoa no passado abaixo da elite. Acima de tudo, com tem sido dito sobre novas tecnologias há 200 anos, tornariam possível o sonho mágico da “sociedade do lazer.”

Aparelhos de TV interativos, filmes sob demanda, vídeo games, base de dados, programação educacional, compras de casa, serviços de banco telefônicos, realidade virtual de todos os tipos – os cybergurus jorram todas as maravilhas dos novos serviços de informação para o povo comum. Mas é difícil escapar de algumas suspeitas fundamentais – de que teremos ainda menos lazer do que antes, de que muitas pessoas terão uma ansiedade ainda maior devido à alta complexidade, e de que o nível popular de pedidos (por alguma vaga de emprego ou estudo) testemunhará mais lixo cultural do que excelência.

Em resumo, o que o equipamento torna possível, o programa tornará real. E os sinais são de que programas comercialmente viáveis não trarão – para dizer caridosamente – nenhum aumento na excelência do nível artístico e intelectual do que a mediocridade da televisão durante os últimos cinquenta anos. A união frutífera entre alta tecnologia e a podridão da “cultura idiota” não parece que verá um divórcio tão cedo.

O ESPERANTO DE NOSSOS TEMPOS

Talvez os desafios mais difíceis à mente cristã venham das ferramentas e estilos da “realidade virtual.” Antes restrita a jogos de entretenimento, as tecnologias de realidade virtual constituirão uma nova forma de experiência humana – “um pulo ao espaço eletrônico”, como seus proponentes modestamente alegam.

A tecnologia da realidade virtual (ou RV) ainda está em um estágio rudimentar, mas os seus apaixonados ficam sem ar diante de suas capacidades divinas – a verossimilhança da simulação, a total imersão do meio-ambiente, e a quase-onisciência do “hipertexto” e seu potencial para interpretar qualquer texto. Se a tradição medieval tratava-se sobre o pensamento humano reduzido ao raciocínio lógico, a comunicação via modem é a experiência e o conhecimento humanos reduzidos ao processamento de informação. O cálculo da informação digital é o esperanto de nossos tempos – ou o mais próximo que podemos chegar dele. Nós podemos até não falar a mesma língua, mas um cálculo universal pode trazer todas as línguas a uma única e compartilhada base de dados.

Como um crítico afirmou, o conhecimento humano se aproxima da “cognição intuitiva e onisciente da divindade.” Nenhum desdobramento temporal, nenhum passo linear, nenhum atraso – as últimas tecnologias trazem até nós o limite do tudo-ao-mesmo-tempo do instante, uma informação total com uma simulação semelhante à dos deuses.

Seria a nova cybertecnologia simplesmente uma ferramenta ou uma ameaça à nossa humanidade? Seria o nosso moderno caso de amor com computadores meramente uma questão de fascinação intelectual? Ou seria, como alguns têm dito, erótica – uma procura profundamente espiritual e sensual por um lar para nossa mente e coração? Representaria o cyberespaço um avanço da mente ao custo do corpo – até ao ponto onde o corpo é opcional – até chegar a um novo gnosticismo? Seria importante o fato de que a “telepresença” mediada pela máquina e a “comunidade online” sejam desprovidas do imediatismo e da responsabilidade do compartilhamento linear cara-a-cara?

Somente o tempo responderá a estas questões, mas minha principal preocupação pelo impacto do cyberespaço no pensamento cristão é sobre os temas da verdade e da realidade. Tecnicamente, “realidade virtual” significa um evento ou experiência que é real em efeito mas não de fato. Realidade virtual, em outras palavras, é um mundo tecnológico humanamente construído que combina duas coisas: um alto nível de realismo em simulação e um alto nível de interação que resulta em uma total imersão. Assim, o termo “realidade virtual” foi escolhido pelos seus inventores – e evitado pelos seus críticos – devido a sua promessa metafísica poderosa. Realidade virtual é o Santo Graal do poder criativo da tecnologia.

“Isso é real ou é uma bobina?”. Esta pergunta, de uma geração atrás, tinha a intenção de ajudar crianças a distinguir fatos da fantasia na televisão e, assim, torná-las “alfabetizadas” em assistir à televisão. O poder da realidade virtual suspende todas estas questões e leva-nos a outro mundo. Realidade virtual, hoje, ainda está em um nível cru, mas a promessa de seu progresso leva-nos a um nível mais alto – próximo ao que Richard Wagner tinha em mente com seu conceito de “obra de arte total” no Festival Bayreuth.

Quando Wagner terminou sua última ópera, Parsifal, não a via simplesmente como ópera, ou música, teatro ou arte – e certamente não como “entretenimento.” Ele rivalizava com a ala do alto-catolicismo e sua missa. Ele estava criando uma realidade artificial que pudesse se tornar uma experiência total, que transformasse a realidade e a experiência ordinárias. O propósito final era nada menos que religioso.

A realidade virtual de hoje é um grito distante da alta arte de Wagner – graças a Deus, pois os comícios de Hitler em Nuremberg imitavam Wagner tão astutamente quanto qualquer um. Sem dúvida a realidade virtual, no futuro, alcançará suas próprias simulações de Bayreuth. Sem dúvida o caminho será bagunçado com simulações mais toscas, mais triviais, e menos pretensiosas. Mas a tendência geral é provavelmente a de minar o status da realidade e da verdade. Fantasias pessoais, estórias, romances e filmes já nos movem de uma dimensão da realidade a outra – e de maneira muito apropriada. Mas a mudança representada pela realidade virtual é um salto quântico à artificialidade e ao relativismo, um grande desafio da finitude e decadência da realidade como observadas na visão cristã do mundo.

MANTENDO VIRTUAL A REALIDADE VIRTUAL

Como podemos manter virtual a realidade virtual? Seria possível que as tecnologias do amanhã nos permitirão escapar da coleira da realidade mundana o suficiente para criar a ilusão de uma realidade além do que é real? O cybergnosticismo seria o resultado de tais voos imaginários, pois a experiência última de RV do futuro terá como objetivo ser espiritualmente sublime. Sem dúvida, podemos esperar que as sujas, mas altamente imaginativas seções de comércio cristão produzam não apenas “A Batalha do Armagedon em RV” mas também “Conversões Virtuais”, “Tempos de Quietude Virtuais”, “Experiências Místicas Virtuais”, e “Grupos de Recuperação Virtuais online”.

O principal objetivo do desenvolvimento da realidade virtual traz profundas questões filosóficas e religiosas. Como Michael Heim alerta, “Uma proliferação irrestrita de mundos clamam por sanidade, por conexão com a realidade, por alicerce metafísico.” Mas o objetivo menor terá o maior impacto. A visão bíblica da realidade é gloriosamente realística – vida humana das cinzas vivida na forma de sangue, suor e lágrimas.

Já podemos esperar pelos cybercorpos da realidade virtual do amanhã serem capazes de sofrer as desordens esperadas que são os avanços no fuso horário de hoje e as doenças de simulador. A realidade cristã será, então, o último melhor conferidor de realidade de sistemas de realidade virtual. Mas isto se os cristãos ainda forem moldados pela verdade decisivamente diferente na qual acreditamos. O reino mágico do “cristianismo virtual” pode ter um mercado, mas não tem futuro.

O ALARME DE INCÊNDIO E O INCENDIÁRIO

Como enfatizei no início da Segunda Parte, esta breve pesquisa sobre oito pressões culturais não é exaustiva. Muitas outras pressões poderiam ser citadas – por exemplo, a influência da psicologia em um nível popular (o “triunfo da terapia” de Philip Rieff). Ninguém deveria formar conclusões falsas destes alertas.

Uma falsa conclusão é que eu preciso me opor a qualquer ou a todas estas coisas – televisão, comerciais, estilo, programas de auditório, conversas sobre gerações, realidade virtual, pós-modernismo, psicologia e assim por diante. Como Marshall McLuhan dizia, “Me sinto como um homem que dispara o alarme de incêndio, mas acaba sendo acusado de incêndio culposo.” As descrições de McLuhan dos efeitos da tecnologia, em outras palavras, inclinaram pessoas – erradamente – a tomá-lo como inimigo das coisas que descrevia. A mesma coisa acontece aqui. Eu me oponho apenas aos efeitos negativos destas coisas. A modernidade, contudo, é uma espada de dois gumes e eu poderia facilmente escrever sobre seus benefícios em vez de seus custos.

Uma segunda falsa conclusão é que qualquer crítico destas tendências, eu incluso, poderia facilmente resistir às próprias tendências. Nunca é tão fácil. Mesmo Norman Mailer, lamentando o destino de romances sérios, admitiu recentemente que “muitos poucos” de seus nove filhos “são mais engajados com meu trabalho do que o são com as pessoas da televisão.” Ele confessou que tem se rebaixado ao suborno a seu filho mais novo, para que leia dez romances, ao prometer duas horas diárias de televisão se ele o fizer – algo não satisfatoriamente bem sucedido.

Uma terceira falsa conclusão é que estas pressões são abstratas e sem consequência – muito intelectuais e remotas para fazer qualquer diferença. Longe disso. Nós já temos examinado o escândalo e o pecado – a ineficácia evangélica na vida pública, por exemplo. Deixe-me adicionar aqui uma outra consequência: a crescente degradação do pensamento cristão à especulação, heresia, blasfêmia e o comportamento estranho.

Muitos evangélicos ficaram chocados e enfurecidos com o evento “Re-Imaginando”, uma “Conferência Teológica Global de Mulheres”, que aconteceu em Minneapolis em 1993. Apresentações ridicularizando a ortodoxia e negando a expiação de Jesus Cristo, aplausos efusivos a lésbicas, um culto com leite e mel à deusa Sofia – o que sobrou do “protestantismo principal” ostentava algumas das heresias mais vis já criadas na igreja de Cristo em dois mil anos.

Ainda assim, o que muitos evangélicos falham em reconhecer e protestar é um movimento similar que cresce em círculos conservadores. Ouça atenciosamente aos pregadores da Fé[iii]. A teologia, política e estilos culturais são diferentes, mas a heresia, blasfêmia e estranheza são as mesmas. O paganismo está crescendo em nossas igrejas. O gnosticismo especulativo ressurge em nossos círculos. Um horror de grande escuridão está brotando em nossa própria casa. Ainda assim, julgando pela maneira como a heresia é publicada e anunciada por respeitadas editoras evangélicas e assistida e lida por milhões de bons espectadores e leitores evangélicos, nós, evangélicos, amamos que seja assim. E isto é apenas o começo da degradação do pensamento evangélico que está chegando, a menos que experimentemos uma reforma.

Nosso trabalho, como seguidores de Cristo, não é fácil, mas é claro: o desafio, nas palavras de Paulo, é o de “não nos conformarmos com este presente século, mas sermos transformados pela renovação da nossa mente.” As correntes são velozes e as pressões são grandes, mas um foco no negativo está longe de ser algo negativo. É o primeiro passo para o mais positivo de todos, isto é, ter a mente de Cristo.

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Capítulo 16 – “Real, Reel, or Virtually Real?” – do livro “Fit Bodies, Fat Minds: Why Evangelicals Don’t Think and What to Do About it.” de Os Guinness, Hourglass Books, 1994,  traduzido por Renan Santos Lima.


[i] Originalmente, o autor faz um jogo de palavras com a pronúncia de “real” e “reel” (bobina), muito semelhantes entre si. O uso do termo será explicado a seguir.
[ii] Conhecidos como jogos RPG: “role-playing games”.
[iii] O autor refere-se ao movimento neopentecostal Palavra da Fé, proponente da Teologia da Prosperidade.

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