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September 3, 2020

O Problema com a "Adoração Eletrônica" é que ela gera a "Adoração Platônica" - N.T. Wright


Em países como o meu, onde igrejas (dentre outros locais de culto, incluindo sinagogas e mesquitas) foram fechadas, por razões completamente compreensíveis, há o perigo de enviarmos acidentalmente o sinal errado para o mundo inteiro. Nos últimos trezentos anos, o mundo ocidental tem considerado a ‘religião’ (a própria palavra mudou de significado para acomodar esse novo ponto de vista) como um assunto privado, ‘o que alguém faz no particular’. A fé cristã como um todo foi reduzida, na mentalidade pública, a um movimento ‘particular’ no sentido de que, segundo muitos alegam, não deveria ter lugar algum na vida pública. Assim, ainda posso comprar uma bebida em algum mercado ou loja de esquina; mas não posso me sentar no velho templo da igreja, do outro lado da rua, e participar de um culto de oração. Nesse caso, a adoração se torna invisível; e o fechamento de igrejas parece conspirar com isso. Ao dizer que aboliremos temporariamente o culto corporativo e nos reuniremos com outras pessoas apenas em cultos on-line, realizados ao vivo da sala de estar da casa do ministro, podemos dar a entender que, de fato, não passamos de um grupo de indivíduos com ideais semelhantes em busca de um passatempo arcano particular. Nesse contexto, o problema com a ‘adoração eletrônica’ é que ela acaba se transformando em uma ‘adoração platônica’, isto é, ‘sozinhos com todo o mundo’. Visto que já existem pressões culturais nessa direção, importa-nos reconhecer o perigo.

Felizmente, ao que tudo indica, muitas pessoas que ‘foram para a igreja’ nessa realidade virtual não teriam participado de um culto em algum templo físico; tal desenvolvimento é motivo de regozijo. No entanto, nossas igrejas têm sido há séculos lembretes físicos e audíveis – em ruas movimentadas e em lugares afastados, nos campos e nas cidades – de um estilo de vida que a modernidade ocidental tentou sufocar. Sem dúvida, temos aprendido muitas coisas neste tempo de ‘exílio forçado’ – é exatamente isso que estamos enfrentando, um exílio – mas devemos orar pelo dia em que nossos templos funcionarão, no contexto da nossa sociedade, da forma como foram planejados.

Em outras palavras, estou preocupado com o modo pelo qual a Igreja, deparando-se com uma grande crise, seguiu docilmente o parecer de uma liderança secularizada. Do ministério de Jesus em diante, o sinal da nova criação tem sido a presença restauradora do próprio Jesus e, acima de tudo, sua morte e ressurreição. A realização do culto público ao Deus Triúno – observadas todas as medidas de segurança – foi sempre parte importante do envio desse sinal ao mundo observador. Quando Paulo diz aos filipenses: ‘Alegrem-se sempre no Senhor’, a palavra ‘alegre-se’ não significa apenas ‘sinta-se muito feliz no seu interior’. Significa: ‘saia para a rua e comemore!’ – com o devido distanciamento, claro. Afinal, diversas outras pessoas estão fazendo isso. Nos dias de Paulo, havia muitas procissões, festas de rua e cerimônias religiosas acontecendo em público, de modo que todos podiam ver o que estava acontecendo. Paulo queria que os seguidores de Jesus fizessem a mesma coisa. Na Bíblia, a palavra para ‘alegria’ conota algo que você pode ouvir a uma certa distância. Veja, por exemplo, Neemias 12:43.

Pego-me entre esses dois pontos de vista; e ao que me parece, ambos estão corretos. Entendo perfeitamente que devemos ser responsáveis e escrupulosamente respeitosos. Fico alarmado com relatos de pessoas devotas, mas mal orientadas, que ignoram regulamentos de segurança por acreditarem que, como cristãs, serão automaticamente protegidas contra doenças ou que, como ouvi alguém dizer na televisão, ‘você está seguro dentro da igreja porque o Diabo não pode entrar lá’. (Queria dizer à pessoa que ouvi: ‘Acredite-me, senhora, sou bispo: o Diabo entra e sai de lá, como qualquer outra pessoa’). É o tipo de superstição que traz má reputação à fé cristã. Semelhantemente, debates sobre fechar a porta das igrejas podem facilmente gerar controvérsias paralelas – entre aqueles, por exemplo, para os quais o edifício e todos os seus elementos têm sido parte vital de sua espiritualidade e aqueles aos quais essas coisas são irrelevantes, visto que qualquer pessoa pode adorar a Deus em qualquer lugar. Ambos os lados podem aprender com a crise atual, e fazemos bem em acolher uns aos outros em oração e amor.

Parte da resposta a essa oração, como muitos já perceberam, pode ser o discernimento de que o presente momento é um tempo de exílio. Encontramo-nos ‘junto aos rios da Babilônia’, confusos e sofrendo a perda da nossa vida normal. ‘Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estrangeira?’ (Salmos 137:4) se traduz facilmente em: ‘Como posso sentir a alegria de participar da Ceia do Senhor olhando para a tela de um computador?’. Ou então: ‘Como posso celebrar a entronização de Jesus e o derramamento do Espírito Santo sem a companhia dos meus irmãos e irmãs?’

Evidentemente, parte da ideia de Salmos 137 é precisamente o fato de o poema ser, ele próprio, uma ‘canção do Senhor’. Eis a ironia: a escrita de um poema cujo tema é a incapacidade de escrevê-lo. Assim, parte da disciplina do lamento pode ser transformar o próprio lamento em uma canção de tristeza. Talvez seja uma das formas pelas quais somos chamados no momento a sermos pessoas de lamento – lamentando até o fato de não conseguirmos lamentar da forma como normalmente preferiríamos. Devemos explorar essas questões, e as novas disciplinas exigidas de nós, da melhor forma que pudermos. Pode ser que isso também deva ser aceito como parte da vida na Babilônia. Talvez devamos, como nos orientou Jeremias, estabelecer-nos nesse regime e ‘procurar a paz da cidade’ onde estamos [cf. Jr 29:7, ARC]. Todavia, não devemos fingir que é onde queremos estar. Não nos esqueçamos de Jerusalém, nem decidamos permanecer no exílio.

É a esse respeito que as igrejas (e outros grupos como líderes e pensadores judeus) necessitam urgentemente refletir e orar quanto ao que pode e deve ser dito, e sobre como dizê-lo de tal forma que os líderes do mundo ocidental possam ouvir e agir com sabedoria. Com esse fim em mente, abordamos a seção final deste capítulo.”

N. T. Wright, Deus e a Pandemia (RJ: Thomas Nelson, 2020), p. 126-130.

June 24, 2020

Cybergnosticismo - Os Guinness

REAL, BOBINA[i] OU VIRTUALMENTE REAL?




Em dezembro de 1993 um jovem estudante universitário da Virgínia cochilou sobre o volante de seu carro enquanto dirigia pela Rodovia 17. Ele desviou em direção a um caminhão e morreu instantaneamente. De quem era a culpa? Do álcool? Drogas? Pressão do trabalho? Problemas de saúde? Nada disso. Ele simplesmente ficou sem dormir por quase uma semana em sua paixão por entrar no mundo da “AmberMUSH”, uma rede de computadores multiuso dedicada aos jogos de interpretação de papeis[ii].

Na vida real o jovem da Virgínia era estranho, tímido, com suas notas do ensino médio nada espetaculares. Mas online era diferente, como qualquer outro poderia ser – uma desejável porém traiçoeira, manipuladora mulher das ruas chamada Sabbath. Sempre um alvo de provocações e intimidações enquanto crescia, ele tornou-se um consumado “garoto dos jogos”, para quem estar online era um escape da própria existência. Então, como os familiares e amigos disseram depois, o mundo da fantasia e das interpretações tornou-se tão real que ele quase desistiu da vida real e mudou-se para o cyberespaço. Finalmente, a última fase tornou-se a última fase.

PESSOA-A-PESSOA NÃO É CARA-A-CARA
Não podemos fazer grandes generalizações de uma tragédia pessoal como esta. Mas um tema recorrente emergiu das muitas respostas à notícia de sua morte. Parte do apelo da cybercomunicação é que ela é de pessoa-a-pessoa, mas não cara-a-cara. Embora sua capacidade coletiva de ilusão exija muitas habilidades de interpretação de papeis e regras bem desenvolvidas de conduta online, dá licença para a livre expressão da imaginação e emoção, enquanto preserva a privacidade.

O desenvolvedor do programa “AmberMUSH” explicou seu apelo: tais sistemas dão aos usuários “uma chance de pisar fora das fronteiras normais dos limites sociais...Idade, gênero, pano de fundo econômico, preferência sexual, contexto étnico e crenças políticas são completamente irrelevantes...Você pode confiar em estranhos simpáticos com a confiança do completo anonimato. Você pode questionar coisas a que foi ensinado sem ser tratado como algum tipo de excêntrico. Pode ouvir opiniões de tipos que não conheceria de outro modo, pessoas de fora da sua localidade geográfica, envolvidas em trabalhos ou passatempos dos quais você nunca ouviu falar.”

Preocupações sobre o cyberespaço e a nova informação super-rápida estão cercados por um redemoinho de propaganda exagerada e ansiedade, afirmações utópicas ingênuas e premonições obscuras de pessoas avessas à tecnologia. Mas uma coisa é inegável: os últimos desenvolvimentos em tecnologia da comunicação têm implicações desafiadoras à nossa experiência e entendimento da verdade e da personalidade humana. Como tais eles representam outra pressão moderna poderosa pesando sobre a mente cristã.

Se um passado serve como algum guia, o resultado da revolução do computador provavelmente estará em algum lugar entre os otimistas e os pessimistas. No presente momento os cyberentusiastas estão com toda a força, com o Vice-Presidente Gore em baixa. Estas novas tecnologias da comunicação como vídeo-telefones, dizem, irão ajudar a “consertar a família.” Os novos estilos de vida que surgem, como o teletrabalho, irão “restaurar o sentido perdido de comunidade.” As novas ferramentas da comunicação, eles nos anunciam com impassível seriedade, farão da vida humana mais humana.

É difícil, contudo, ficar impressionado. A revolução da televisão foi anunciada com a mesma fanfarra. Os comerciais de televisão, como foi predito nos anos 40, “fortaleceriam os laços familiares” e fariam com que as “cidades se tornassem desnecessárias.” Permitiriam que a alta cultura e as artes permeassem o todo da sociedade. Promoveriam um povo democrático com uma “elevação cultural” além do alcance de qualquer pessoa no passado abaixo da elite. Acima de tudo, com tem sido dito sobre novas tecnologias há 200 anos, tornariam possível o sonho mágico da “sociedade do lazer.”

Aparelhos de TV interativos, filmes sob demanda, vídeo games, base de dados, programação educacional, compras de casa, serviços de banco telefônicos, realidade virtual de todos os tipos – os cybergurus jorram todas as maravilhas dos novos serviços de informação para o povo comum. Mas é difícil escapar de algumas suspeitas fundamentais – de que teremos ainda menos lazer do que antes, de que muitas pessoas terão uma ansiedade ainda maior devido à alta complexidade, e de que o nível popular de pedidos (por alguma vaga de emprego ou estudo) testemunhará mais lixo cultural do que excelência.

Em resumo, o que o equipamento torna possível, o programa tornará real. E os sinais são de que programas comercialmente viáveis não trarão – para dizer caridosamente – nenhum aumento na excelência do nível artístico e intelectual do que a mediocridade da televisão durante os últimos cinquenta anos. A união frutífera entre alta tecnologia e a podridão da “cultura idiota” não parece que verá um divórcio tão cedo.

O ESPERANTO DE NOSSOS TEMPOS

Talvez os desafios mais difíceis à mente cristã venham das ferramentas e estilos da “realidade virtual.” Antes restrita a jogos de entretenimento, as tecnologias de realidade virtual constituirão uma nova forma de experiência humana – “um pulo ao espaço eletrônico”, como seus proponentes modestamente alegam.

A tecnologia da realidade virtual (ou RV) ainda está em um estágio rudimentar, mas os seus apaixonados ficam sem ar diante de suas capacidades divinas – a verossimilhança da simulação, a total imersão do meio-ambiente, e a quase-onisciência do “hipertexto” e seu potencial para interpretar qualquer texto. Se a tradição medieval tratava-se sobre o pensamento humano reduzido ao raciocínio lógico, a comunicação via modem é a experiência e o conhecimento humanos reduzidos ao processamento de informação. O cálculo da informação digital é o esperanto de nossos tempos – ou o mais próximo que podemos chegar dele. Nós podemos até não falar a mesma língua, mas um cálculo universal pode trazer todas as línguas a uma única e compartilhada base de dados.

Como um crítico afirmou, o conhecimento humano se aproxima da “cognição intuitiva e onisciente da divindade.” Nenhum desdobramento temporal, nenhum passo linear, nenhum atraso – as últimas tecnologias trazem até nós o limite do tudo-ao-mesmo-tempo do instante, uma informação total com uma simulação semelhante à dos deuses.

Seria a nova cybertecnologia simplesmente uma ferramenta ou uma ameaça à nossa humanidade? Seria o nosso moderno caso de amor com computadores meramente uma questão de fascinação intelectual? Ou seria, como alguns têm dito, erótica – uma procura profundamente espiritual e sensual por um lar para nossa mente e coração? Representaria o cyberespaço um avanço da mente ao custo do corpo – até ao ponto onde o corpo é opcional – até chegar a um novo gnosticismo? Seria importante o fato de que a “telepresença” mediada pela máquina e a “comunidade online” sejam desprovidas do imediatismo e da responsabilidade do compartilhamento linear cara-a-cara?

Somente o tempo responderá a estas questões, mas minha principal preocupação pelo impacto do cyberespaço no pensamento cristão é sobre os temas da verdade e da realidade. Tecnicamente, “realidade virtual” significa um evento ou experiência que é real em efeito mas não de fato. Realidade virtual, em outras palavras, é um mundo tecnológico humanamente construído que combina duas coisas: um alto nível de realismo em simulação e um alto nível de interação que resulta em uma total imersão. Assim, o termo “realidade virtual” foi escolhido pelos seus inventores – e evitado pelos seus críticos – devido a sua promessa metafísica poderosa. Realidade virtual é o Santo Graal do poder criativo da tecnologia.

“Isso é real ou é uma bobina?”. Esta pergunta, de uma geração atrás, tinha a intenção de ajudar crianças a distinguir fatos da fantasia na televisão e, assim, torná-las “alfabetizadas” em assistir à televisão. O poder da realidade virtual suspende todas estas questões e leva-nos a outro mundo. Realidade virtual, hoje, ainda está em um nível cru, mas a promessa de seu progresso leva-nos a um nível mais alto – próximo ao que Richard Wagner tinha em mente com seu conceito de “obra de arte total” no Festival Bayreuth.

Quando Wagner terminou sua última ópera, Parsifal, não a via simplesmente como ópera, ou música, teatro ou arte – e certamente não como “entretenimento.” Ele rivalizava com a ala do alto-catolicismo e sua missa. Ele estava criando uma realidade artificial que pudesse se tornar uma experiência total, que transformasse a realidade e a experiência ordinárias. O propósito final era nada menos que religioso.

A realidade virtual de hoje é um grito distante da alta arte de Wagner – graças a Deus, pois os comícios de Hitler em Nuremberg imitavam Wagner tão astutamente quanto qualquer um. Sem dúvida a realidade virtual, no futuro, alcançará suas próprias simulações de Bayreuth. Sem dúvida o caminho será bagunçado com simulações mais toscas, mais triviais, e menos pretensiosas. Mas a tendência geral é provavelmente a de minar o status da realidade e da verdade. Fantasias pessoais, estórias, romances e filmes já nos movem de uma dimensão da realidade a outra – e de maneira muito apropriada. Mas a mudança representada pela realidade virtual é um salto quântico à artificialidade e ao relativismo, um grande desafio da finitude e decadência da realidade como observadas na visão cristã do mundo.

MANTENDO VIRTUAL A REALIDADE VIRTUAL

Como podemos manter virtual a realidade virtual? Seria possível que as tecnologias do amanhã nos permitirão escapar da coleira da realidade mundana o suficiente para criar a ilusão de uma realidade além do que é real? O cybergnosticismo seria o resultado de tais voos imaginários, pois a experiência última de RV do futuro terá como objetivo ser espiritualmente sublime. Sem dúvida, podemos esperar que as sujas, mas altamente imaginativas seções de comércio cristão produzam não apenas “A Batalha do Armagedon em RV” mas também “Conversões Virtuais”, “Tempos de Quietude Virtuais”, “Experiências Místicas Virtuais”, e “Grupos de Recuperação Virtuais online”.

O principal objetivo do desenvolvimento da realidade virtual traz profundas questões filosóficas e religiosas. Como Michael Heim alerta, “Uma proliferação irrestrita de mundos clamam por sanidade, por conexão com a realidade, por alicerce metafísico.” Mas o objetivo menor terá o maior impacto. A visão bíblica da realidade é gloriosamente realística – vida humana das cinzas vivida na forma de sangue, suor e lágrimas.

Já podemos esperar pelos cybercorpos da realidade virtual do amanhã serem capazes de sofrer as desordens esperadas que são os avanços no fuso horário de hoje e as doenças de simulador. A realidade cristã será, então, o último melhor conferidor de realidade de sistemas de realidade virtual. Mas isto se os cristãos ainda forem moldados pela verdade decisivamente diferente na qual acreditamos. O reino mágico do “cristianismo virtual” pode ter um mercado, mas não tem futuro.

O ALARME DE INCÊNDIO E O INCENDIÁRIO

Como enfatizei no início da Segunda Parte, esta breve pesquisa sobre oito pressões culturais não é exaustiva. Muitas outras pressões poderiam ser citadas – por exemplo, a influência da psicologia em um nível popular (o “triunfo da terapia” de Philip Rieff). Ninguém deveria formar conclusões falsas destes alertas.

Uma falsa conclusão é que eu preciso me opor a qualquer ou a todas estas coisas – televisão, comerciais, estilo, programas de auditório, conversas sobre gerações, realidade virtual, pós-modernismo, psicologia e assim por diante. Como Marshall McLuhan dizia, “Me sinto como um homem que dispara o alarme de incêndio, mas acaba sendo acusado de incêndio culposo.” As descrições de McLuhan dos efeitos da tecnologia, em outras palavras, inclinaram pessoas – erradamente – a tomá-lo como inimigo das coisas que descrevia. A mesma coisa acontece aqui. Eu me oponho apenas aos efeitos negativos destas coisas. A modernidade, contudo, é uma espada de dois gumes e eu poderia facilmente escrever sobre seus benefícios em vez de seus custos.

Uma segunda falsa conclusão é que qualquer crítico destas tendências, eu incluso, poderia facilmente resistir às próprias tendências. Nunca é tão fácil. Mesmo Norman Mailer, lamentando o destino de romances sérios, admitiu recentemente que “muitos poucos” de seus nove filhos “são mais engajados com meu trabalho do que o são com as pessoas da televisão.” Ele confessou que tem se rebaixado ao suborno a seu filho mais novo, para que leia dez romances, ao prometer duas horas diárias de televisão se ele o fizer – algo não satisfatoriamente bem sucedido.

Uma terceira falsa conclusão é que estas pressões são abstratas e sem consequência – muito intelectuais e remotas para fazer qualquer diferença. Longe disso. Nós já temos examinado o escândalo e o pecado – a ineficácia evangélica na vida pública, por exemplo. Deixe-me adicionar aqui uma outra consequência: a crescente degradação do pensamento cristão à especulação, heresia, blasfêmia e o comportamento estranho.

Muitos evangélicos ficaram chocados e enfurecidos com o evento “Re-Imaginando”, uma “Conferência Teológica Global de Mulheres”, que aconteceu em Minneapolis em 1993. Apresentações ridicularizando a ortodoxia e negando a expiação de Jesus Cristo, aplausos efusivos a lésbicas, um culto com leite e mel à deusa Sofia – o que sobrou do “protestantismo principal” ostentava algumas das heresias mais vis já criadas na igreja de Cristo em dois mil anos.

Ainda assim, o que muitos evangélicos falham em reconhecer e protestar é um movimento similar que cresce em círculos conservadores. Ouça atenciosamente aos pregadores da Fé[iii]. A teologia, política e estilos culturais são diferentes, mas a heresia, blasfêmia e estranheza são as mesmas. O paganismo está crescendo em nossas igrejas. O gnosticismo especulativo ressurge em nossos círculos. Um horror de grande escuridão está brotando em nossa própria casa. Ainda assim, julgando pela maneira como a heresia é publicada e anunciada por respeitadas editoras evangélicas e assistida e lida por milhões de bons espectadores e leitores evangélicos, nós, evangélicos, amamos que seja assim. E isto é apenas o começo da degradação do pensamento evangélico que está chegando, a menos que experimentemos uma reforma.

Nosso trabalho, como seguidores de Cristo, não é fácil, mas é claro: o desafio, nas palavras de Paulo, é o de “não nos conformarmos com este presente século, mas sermos transformados pela renovação da nossa mente.” As correntes são velozes e as pressões são grandes, mas um foco no negativo está longe de ser algo negativo. É o primeiro passo para o mais positivo de todos, isto é, ter a mente de Cristo.

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Capítulo 16 – “Real, Reel, or Virtually Real?” – do livro “Fit Bodies, Fat Minds: Why Evangelicals Don’t Think and What to Do About it.” de Os Guinness, Hourglass Books, 1994,  traduzido por Renan Santos Lima.


[i] Originalmente, o autor faz um jogo de palavras com a pronúncia de “real” e “reel” (bobina), muito semelhantes entre si. O uso do termo será explicado a seguir.
[ii] Conhecidos como jogos RPG: “role-playing games”.
[iii] O autor refere-se ao movimento neopentecostal Palavra da Fé, proponente da Teologia da Prosperidade.

April 21, 2020

Um apelo ao culto presencial - Rev. Cyro Ferreira


Dentre as muitas perdas que a pandemia da COVID-19 nos trouxe, uma delas deveria ser sentida de modo especial entre os cristãos.Todos estamos impedidos de repetir, como fazia a nação de Israel a caminho de Jerusalém, quando cantava: Alegrei-me quando me disseram: Vamos à Casa do SENHOR. (Sl 122.1). Milhões de crentes estão agora aquartelados em suas casas, receosos de um inimigo invisível, sem poder congregar, e cultuar ao Senhor apropriadamente nas suas igrejas aos domingos.
Alguns, entretanto, têm se questionado se a tecnologia à nossa disposição não supre esta tarefa de nos trazer o culto, quando não podemos ir até ele. Os apps de vídeo conferência, redes sociais e sites de mídia nos deixam realmente próximos uns dos outros. Será que talvez não deveríamos fazer cultos online, ou até quem sabe ministrar os sacramentos de maneira virtual?
Não, não deveríamos.
Por favor, não me entenda mal. Minha intenção não é recusar os benefícios maravilhosos que a tecnologia tem nos trazido. Dias atrás recebi um vídeo que me emocionou bastante: 48 pessoas, de 14 países diferentes, gravaram suas vozes em suas próprias casas para formar um coral virtual. O resultado é maravilhoso! Os tons estão perfeitamente equalizados e sincronizados na edição, de maneira que é possível quase crer que se trata realmente de um coral de verdade cantando no seu celular.
Quase. Faltam algumas coisas.
Falta a presença real de cada naipe de vozes, falta o ensaio presencial de todos antes da apresentação, faltam os coristas alinhados uns aos outros a espera da ordem do maestro à frente. Quando eu era tenor no coral da minha igreja, muitas vezes eu tapava um ouvido enquanto cantava, pra ouvir não só a minha própria voz, mas também a do meu companheiro ao lado, pra saber se estávamos no mesmo tom. Não dá pra fazer o mesmo quando se está sozinho. A experiência do coral virtual é belíssima, mas não é completa porque não é real, é apenas virtual. Se você duvida do meu argumento, eu lhe pergunto: Você preferiria assistir a final da Copa do mundo no sofá de casa, ou na primeira fila do estádio? Ouvir o CD do seu cantor favorito, ou ir à gravação do show? Seria, por acaso, a pornografia uma relação sexual verdadeira?
A razão para responder “não” a todas essas perguntas é muito simples: somos seres humanos reais, de carne e osso. E ainda que exista alguma discussão sobre a quantidade de “partes” que o homem é feito, não há dúvidas de quais são elas: uma substância material, outra imaterial, e ambas são essenciais no momento do culto. Não é possível dispensar qualquer uma delas quando cultuamos ao Senhor, pois um ser humano não é um corpo inanimado, mas também não é um espírito desencarnado, é uma pessoa individual, ou em uma palavra mais técnica: uma unidade psicossomática. Embora as tecnologias tenham avançado a tal ponto de nos entregar uma qualidade de imagem e vídeo bem próximos do real, transmissões de internet não são seres humanos reais. Por isso não podemos equiparar um culto público a uma reunião via internet.
Ouvi um colega pastor comentar, que se uma igreja quiser fazer um culto online, não haveria problema, pois embora distantes, todos estariam reunidos no mesmo espírito. Mas por que somente “no mesmo espírito”? Por acaso nosso espírito, é mais valioso que o corpo? Isso me parece aquela antiga heresia, o Gnosticismo, que afirmava exatamente isso: o espírito é perfeito, mas a matéria não. Misturando elementos da fé cristã com a filosofia grega, os gnósticos causaram enormes males no primeiro e segundo século, sendo necessário, por exemplo, que os apóstolos reafirmassem que Jesus teve um corpo humano igual a qualquer um de nós (cf. 1Jo 4.1-6 e 2Jo 7-11). [1]
A humanidade de Jesus é um elemento essencial na fé cristã, pois ele precisava tornar-se plenamente homem, para oferecer um sacrifício aceitável ao Pai, pelos nossos pecados, e em nosso lugar (cf. Hb 2. 5-18). O nascimento virginal, vida perfeita e a morte corpórea de Jesus foram o culto perfeito apresentado a Deus, do qual o nosso culto é tão somente uma imitação. Esse é o argumento do autor de Hebreus em 10. 19-25: Temos intrepidez para entrarmos na presença de Deus (v.19), tão somente por causa da morte de Jesus como homem (v.20). A implicação direta do sacrifício cultual de Jesus é clara: Não deixemos de congregar (v. 25).
O Senhor deseja que estejamos presentes de corpo e alma no culto. Aproveitem os recursos que a tecnologia nos dá, mas não ofereça a Deus, menos do que ele deseja de nós. Por isso, “rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.” (Rm 12.1)

[1] Vale a pena conferir também o ensino das confissões reformadas sobre a pessoa de Cristo em sua humanidade: Confissão de Fé de Westminster cap. VIII, parágrafo 3; Catecismo Maior de Westminster, pergunta 38; Catecismo Menor de Westminster, pergunta 21; Confissão Belga, artigo 19; Catecismo de Heidelberg, perguntas 16, 17; Segunda Confissão Helvética, cap. XI, parágrafo 6, 7.

April 13, 2020

Quem pode ministrar os Sacramentos? Ageu Magalhães


Com o isolamento social imposto pelo coronavírus algumas igrejas inauguraram a prática de "ceia online". O procedimento consiste em os membros da igreja providenciarem os elementos da ceia (pão e vinho) e o pastor, via internet, fazer a oração de consagração dos elementos, à distância. Os crentes se servem a si próprios.

Muitos artigos contrários a esta prática foram escritos. Todavia, eu gostaria de abordar um ponto importante que geralmente é questionado nessa discussão: Quem pode ministrar sacramentos? Só o pastor ou qualquer membro da igreja? Veja os pontos abaixo:

1º Administração de Sacramentos é algo exclusivo de oficiais

Jesus é o Rei da Igreja e a administra por meio dos oficiais, que devem seguir a Palavra.

No Antigo Testamento os ofícios eram de Profeta, Sacerdote e Rei. Cada ofício tinha sua função e limites: O profeta era a boca de Deus. Anunciava a mensagem do Senhor. O Sacerdote era o intermediário entre Deus os homens. O Rei era quem regia o povo, aplicando as leis do Senhor. Eram limitados por seus ofícios. De forma que o rei não podia oferecer sacrifícios, nem o profeta podia requerer o trono e muito menos o sacerdote podia querer falar em nome do Senhor. Cada ofício tinha funções e limitações.

No Novo Testamento os ofícios temporários eram o de Apóstolo e Evangelista (At 21.8, Ef 4.11). Os ofícios permanentes (que estão em vigor hoje) eram de Presbítero e Diácono. 

Nós não encontramos no Novo Testamento pessoas que não sejam oficiais, isto é, que não tenham ofício, ministrando sacramentos. Veja os exemplos: João Batista (Profeta), Jesus (Profeta, Sacerdote e Rei), Felipe (Evangelista), Paulo (Apóstolo). A única exceção foi Ananias, ordenado imediatamente por Deus. No geral, não há não oficiais ministrando.

É por isso que, nas igrejas reformadas, "leigos" não administram sacramentos. Não há base bíblica para isso. Apenas oficiais estão autorizados pela Palavra a fazê-lo. "Ninguém, pois, toma esta honra para si mesmo, senão quando chamado por Deus, como aconteceu com Arão." (Hb 5.4)

2º O Ensino deve acompanhar o Sacramento

As últimas palavras de Jesus, no Evangelho de Mateus, foram:

"Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século." (Mt 28.18-20)

A ordem do batismo tem, antes e depois, o elemento do ensino. Antes temos "fazei discípulos" e depois "ensinando-os a guardar todas as coisas". Isso mostra que o batismo segue junto com o ensino da Palavra. Os apóstolos receberam primeiro este encargo de ensinar e batizar e, depois deles, a Igreja.

Tratando sobre isso, João Calvino escreveu:

"Também diz respeito a este assunto saber que não é bom que uma pessoa particular usurpe para si a administração, pois ela é parte do ministério eclesiástico, tanto quanto a dispensação da Ceia. Pois Cristo não ordenou nem às mulheres nem a quaisquer homens que batizassem, mas deu este mandato àqueles que ele havia constituído apóstolos. E quando mandou que os discípulos fizessem, ao administrar a ceia, o que viram que ele havia feito, quando cumpriu a função de um legítimo administrador, sem dúvida quis que eles imitassem nisso seu exemplo (...) Pois as palavras de Cristo são claras: 'ide, ensinai a todas as nações e batizai-as'” (Mt 28.19). Uma vez que ele constitui pregadores do Evangelho os mesmos ministros do batismo, e que ninguém na Igreja, segundo o Apóstolo, deve usurpar esta honra, senão aquele que for chamado, como Aarão (Hb 5.4), qualquer um que batize sem vocação legítima apodera-se do ofício de outro. Paulo clama claramente que tudo o que se empreende com a consciência dividida, ainda que em coisa sem importância, como a comida e a bebida, é pecado (Rm 14.23). Portanto, peca-se muito mais gravemente quando uma mulher batiza, uma vez que a regra estabelecida por Cristo é claramente violada; pois bem sabemos que é pecado separar as coisas que Deus juntou." (Institutas, 4.15.20,22)

Na mesma linha escreveu Herman Bavinck: 

"Alguns como Grotius, Salmasius e Episcopius (et al.), afirmam que, se o sacerdote ou ministro regular estiver ausente, a Ceia do Senhor também pode ser ministrada por um membro comum da igreja. No entanto, essa opinião não é bem fundamentada. Em Mateus 28.19, a ministração do batismo juntamente com a da Palavra foi confiada aos apóstolos. Eles, juntamente com os ministros, são os distribuidores dos mistérios de Deus, os proclamadores dos “segredos” que Deus revelou no evangelho de Cristo (1Co 4.1), despenseiros de Deus cuja tarefa é distribuir sua graça (1Co 9.17; Tt 1.7-9)." (Dogmática Reformada, ECC, 2012, Vol. 4, p. 569)

Mais recentemente, Chad Van Dixhoorn, no seu Guia de Estudos da Confissão de Fé, escreveu:

"Certamente, ao refletir sobre as pessoas que devem administrar os sacramentos, é importante perceber que Jesus comissionou seus discípulos escolhidos para ir por todo o mundo com a Palavra e os sacramentos – foi um encargo deliberadamente dado aos mestres da Igreja (Mt 28.19)." (p. 369)

Em suma, o mandamento de ensinar e batizar foi dado aos apóstolos, os primeiros pastores da Igreja. Estes ficaram responsáveis por seguir esta comissão com fidelidade.  Eles receberam este encargo, bem como toda a instrução de Jesus. Quando Paulo corrigiu os coríntios quanto à ceia, ele disse: "Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei..." (1Co 11.23). Vemos aqui a fidelidade de Paulo em passar exatamente o que recebeu: sem acréscimos, nem diminuições.

O sacramento (mysterion) anda junto com a Palavra porque, para administrá-lo, é necessário o entendimento da Palavra. Qual é o significado, por exemplo, de expressões como "lavar regenerador" (Tt 3.5), "isto é o meu corpo" (1Co 11.24) ou "discernir o corpo" (1Co 11.29). É necessário o afadigar-se na Palavra (1Tm 5.17) para entender e explicar estas profundas expressões bíblicas.

3º Os ministros da Palavra são também ministros dos Sacramentos

A palavra "sacramento" vem do grego mysterion, algo encoberto que deve ser revelado. Agostinho definiu sacramento como "um sinal visível de uma graça invisível". A água, o pão e o vinho não tem palavras, mas falam eloquentemente, têm profundo significado. Sacramento é linguagem não verbal, e Deus utilizou, muitas vezes, linguagem não verbal para expressar sua verdade.

O sacramento não pode ser divorciado da Palavra. A mensagem verbal aperfeiçoa e completa a mensagem não verbal. Em 1 Coríntios 4.1 o apóstolo Paulo escreve que “Assim, pois, importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus.”

Comentando esta passagem, Bavinck escreveu:

“Com referência a esses mistérios, deve-se, indubitavelmente, antes de tudo, pensar na palavra do evangelho. Entretanto, o sacramento segue a Palavra e está sempre conectado a ela. Em Jerusalém, os apóstolos se dedicaram ao ministério da oração e da Palavra (At 6.4). No partir do pão (At 20.7,11), Paulo falou. Dar graças na Ceia do Senhor era uma parte do ministério da Palavra e, portanto, era algo atribuído ao ministro, embora, como o partir do pão em 1 Coríntios 10.16, seja representado como um ato da congregação. De acordo com o Didaqué, portanto, a ação de graças (eucharistein) é a tarefa própria dos profetas; de acordo com Inácio, é a tarefa do bispo; de acordo com Justino, é a tarefa que pertence ao ministro que preside (proestos), enquanto, a esse respeito, os diáconos serviam e davam o pão e o vinho aos comungantes. Essa ligação exclusiva da ministração da Ceia do Senhor com a da Palavra prova que o ministro age em nome de Cristo e funciona como o despenseiro e distribuidor de seus mistérios.” (Dogmática Reformada, ECC, 2012, Vol. 4, p. 569).

Na mesma linha de pensamento, Calvino afirma:

“Paulo enaltece o evangelho ao denominá-lo de os mistérios de Deus. Além do mais, visto que os sacramentos se acham conectados a esses mistérios como suplementos, segue-se que aqueles que se acham responsabilizados a ocupar-se da Palavra, também estão autorizados a ministrá-los.” (1 Coríntios, Parácletos, 1996, p. 125)

Chad Van Dixhoorn também entende assim:

"Se os sacramentos são adequadamente denominados 'mistérios' do Evangelho, pode ser que o Novo Testamento ensine que os sacramentos devem ser ministrados pelos ministros, pois o apóstolo Paulo diz: “assim, pois, importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus (1Co 4.1)." (p. 369).

4º O estabelecido nas Confissões de Fé Reformadas

O entendimento das verdades bíblicas expostas acima consolidou-se no que temos estabelecido nas confissões da Igreja. Veja o que dizem estas confissões:

Confissão Belga (1561) 

"Cremos que esta verdadeira igreja deve ser governada conforme a ordem espiritual, que nosso Senhor nos ensinou na sua Palavra. Deve haver ministros ou pastores para pregarem a Palavra de Deus e administrarem os sacramentos; deve haver também presbíteros e diáconos para formarem, com os pastores, o conselho da igreja. Assim, eles devem manter a verdadeira religião e fazer com que a verdadeira doutrina seja propagada, que os transgressores sejam castigados e contidos, de forma espiritual, e que os pobres e os aflitos recebam ajuda e consolação, conforme necessitam." (Artigo 30)

"Os ministros, por sua parte, nos administram somente o sacramento, que é visível, mas nosso Senhor nos concede o que o sacramento significa, a saber: os dons invisíveis da graça. Ele lava nossa alma, purificando-a e limpando-a de todas as impurezas e iniquidades. Ele renova nosso coração, enchendo-o de toda a consolação, e nos dá a verdadeira certeza de sua bondade paternal. Ele nos reveste do novo homem, despindo-nos do velho com todas as suas obras" (Artigo 34).

Catecismo de Heidelberg (1563)

"... 
Cristo me mandou, assim como a todos os fiéis, comer do pão partido e beber do cálice, em sua memória. E Ele acrescentou esta promessa: Primeiro, que, por mim, seu corpo foi sacrificado na cruz e que, por mim, seu sangue foi derramado, tão certo como vejo com meus olhos que o pão do Senhor é partido para mim e o cálice me é dado. Segundo, que Ele mesmo alimenta e sacia minha alma para a vida eterna com seu corpo crucificado e seu sangue derramado, tão certo como recebo da mão do ministro e tomo com minha boca o pão e o cálice do Senhor. Eles são sinais seguros do corpo e do sangue de Cristo".

Segunda Confissão Helvética (1566)

"... Pois o próprio Senhor nosso não nomeou nenhum sacerdote na Igreja do Novo Testamento, que, tendo recebido autoridade do sufragâneo, ofereçam sacrifício diariamente, isto é, a própria carne e sangue do Senhor, pelos vivos e mortos, mas ministros que ensinem e administrem os sacramentos." (18)

"Os ministros, despenseiros dos mistérios de Deus. Contudo, para explicar mais completamente o ministério, o apóstolo acrescenta que os ministros da Igreja são ecônomos ou despenseiros dos mistérios de Deus. Ora, em muitas passagens, especialmente em Efésios, cap. 3, São Paulo chamou “mistérios de Deus” ao Evangelho de Cristo. E os escritores antigos também chamaram “mistérios” aos sacramentos de Cristo. Assim, é para isto que os ministros da Igreja são vocacionados - para pregarem o Evangelho de Cristo aos fiéis e para administrarem os sacramentos." (18) 

"Os deveres do ministro. São vários os deveres dos ministros, no entanto, em geral se restringem a dois, nos quais todos os outros estão incluídos: o ensino evangélico de Cristo e a legítima administração dos sacramentos (...) Mas, além de tudo isso, é seu dever administrar os sacramentos, recomendar o uso justo deles e, pela sã doutrina, preparar todos para recebê-los; conservar também os fiéis numa santa unidade; e impedir os cismas, enfim catequizar os ignorantes, recomendar à Igreja as necessidades dos pobres, visitar, instruir e conservar no caminho da vida os enfermos e os afligidos por várias tentações..." (18)

"Ensinamos que o batismo não deve ser administrado na Igreja por mulheres ou por parteiras. São Paulo vetou à mulher os ofícios eclesiásticos. E o batismo pertence aos ofícios eclesiásticos." (20)

Cânones de Dort (1619)

"... Por esta razão os apóstolos, e os mestres que os sucederam, piedosamente instruíram o povo acerca da graça de Deus, para sua glória e para humilhação de toda soberba do homem. Ao mesmo tempo eles não descuidaram de manter o povo, pelas santas admoestações do Evangelho, sob a ministração da Palavra, dos sacramentos e da disciplina." (4.18)

Confissão de Fé de Westminster (1646)

"Há apenas dois sacramentos ordenados por Cristo, nosso Senhor, no Evangelho: O Batismo e a Ceia do Senhor. Nenhum dos quais pode ser administrado senão por um ministro da Palavra, legalmente ordenado." (27.4)

"O elemento exterior, usado neste sacramento, é água, com a qual a pessoa é batizada em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, por um ministro do Evangelho, legalmente ordenado." (28.2)

“Nesta ordenança, o Senhor Jesus constituiu os seus ministros para declarar ao povo a sua palavra de instituição, orar, abençoar os elementos, pão e vinho, e assim separá-los do uso comum para um uso sagrado; para tomar e partir o pão, tomar o cálice, dele participando também, e dar ambos os elementos aos comungantes, e tão-somente aos que se acharem presentes na congregação.” (29.3)

Catecismo Maior de Westminster (1648)

"Cristo ordenou que os ministros da Palavra, na administração deste sacramento, separassem o pão e o vinho do uso comum pela palavra da instituição, ações de graça e oração; que tomassem e partissem o pão e dessem, tanto este como o vinho, aos comungantes, os quais, pela mesma instituição, devem tomar e comer o pão e beber o vinho, em grata recordação de que o corpo de Cristo foi partido e dado, e o seu sangue derramado por eles." (perg. 169)

"Os sacramentos do Batismo e da Ceia do Senhor concordam em ser Deus o autor de ambos; em ser Cristo e os seus benefícios a parte espiritual de ambos; em ambos serem selos do mesmo pacto, em não deverem ser administrados senão pelos ministros do Evangelho, e em deverem ser continuados na Igreja de Cristo até a sua segunda vinda." (perg. 176)


Concluindo, temos 4 fortes razões para não participarmos de uma "ceia doméstica" ou "online", administrada por quem não é pastor. Primeiro, a constatação de que, no Novo Testamento, os sacramentos são sempre administrados por oficiais. Segundo, a averiguação de que o sacramento sempre vem acompanhado do ensino e explicado por ele. Terceiro, a confirmação de que os ministros de Cristo são os despenseiros dos mistérios de Deus, e nestes estão também os sacramentos. E, quarto, o reconhecimento das igrejas de que este é um ensino bíblico, fazendo parte, portanto, das principais confissões de fé reformadas. 

A percepção destas verdades nos guardará do erro. E errar na participação do sacramento é pecado grave. Os coríntios foram disciplinados por causa disso: "Eis a razão por que há entre vós muitos fracos e doentes e não poucos que dormem." (1Co 11.30). Que Deus nos livre de profanarmos a mesa do Senhor.

April 8, 2020

O Leão Ruge - Pensamentos sobre o COVID-19 - Joseph Pipa





Um dos meus alunos no Greenville Presbyterian Theological Seminary me pediu para fazer uma reflexão sobre a situação atual envolvendo a questão do COVID-19 (novo Coronavírus).

Primeiro, afirmamos a partir das Escrituras que tudo o que está ocorrendo em relação a esse vírus, em todo o mundo e em nosso próprio país, faz parte do bom e soberano propósito de Deus. Deus preordenou tudo o que acontece, e ele executa seus decretos mediante a sua providência (Dn 4.34-35; Sl 135.6). Ao asseverar os decretos absolutos de Deus, não excluímos as causas secundárias, mas confessamos que a causa primária é a boa vontade de Deus. O bom propósito de Deus abrange cada doença, cada morte, além de todas as crises sociais e econômicas. Além disso, Cristo, como Rei e Mediador, está dirigindo todas as coisas para o bem e por amor da sua Igreja (Ef 1.22, 23). A realidade do controle soberano de Deus sobre esta novela Coronavírus e sua disseminação, tem influência direta em nosso pensamento, em nosso modo de falar e em nosso comportamento diante disso.

Segundo, visto que essa pandemia está de acordo com a santa vontade de Deus, precisamos nos perguntar: "O que Deus está fazendo?". Por meio de perguntas retóricas sobre causa e efeito, o profeta Amós expõe a relação entre um e outro: “Andarão dois juntos se não houver entre eles acordo? Rugirá o leão no bosque, sem que tenha presa? Levantará o leãozinho no seu covil a sua voz, se nada tiver apanhado? Cairá a ave no laço em terra, se não houver armadilha para ela? Levantar-se-á da terra o laço, sem que tenha apanhado alguma coisa? Tocar-se-á a trombeta na cidade, e o povo não estremecerá?”. Em seguida, o profeta faz uma relação com as obras de Deus: “Sucederá algum mal na cidade sem que o Senhor o tenha feito? Certamente o Senhor não fará coisa alguma, sem primeiro revelar o seu segredo aos seus servos, os profetas. Rugiu o leão, quem não temerá? Falou o Senhor Deus, quem não profetizará?” (Am 3.3-8).
Deus está rugindo e ele já revelou coisas em sua Palavra nas quais devemos pensar e falar.

Primeiro, Deus está agindo através dessa "calamidade natural" com todas as suas repercussões para proclamar seu santo juízo. De fato, o Senhor é longânimo e tardio em irar-se, mas, ao longo da História, ele age periodicamente em seus juízos temporais. É correto dizer que nada dessa magnitude mundial acontecia desde a II Guerra Mundial. Deus está julgando as nações por sua idolatria e corrupção. Mas, vamos considerar a situação atual do nosso próprio país. Não estaria Deus julgando os Estados Unidos? Somente neste ano foram realizados aproximadamente 140.000 abortos (desde 1.o de janeiro de 2020). Pervertemos a santa aliança do casamento com promiscuidade sexual, adultério, pornografia e sodomia. Entre nossos muitos ídolos estão o esporte e o materialismo.

O leão está rugindo? Com certeza. Deus ruge.

Segundo, Deus está corrigindo e instruindo o seu povo. Os cristãos não estão isentos dos sofrimentos causados por esse vírus. O apóstolo Pedro ensina que o juízo começa com a família de Deus (1 Pe 4.17). Para nós, no entanto, não é um julgamento de castigo e punição, mas de disciplina: “Filho meu, não rejeites a disciplina do Senhor, nem te enfades da sua repreensão. Porque o Senhor repreende a quem ama, assim como o pai, ao filho a quem quer bem.” (Pv 3.11, 12). Essa correção é corporativa e individual; pode ser por pecados específicos ou, de modo geral, para corrigir e purificar. Individualmente, devemos examinar nossa própria vida para ver se Deus está nos corrigindo individualmente por pecados específicos. Caso venhamos a discernir atitudes ou ações específicas que têm relação direta com as consequências provocadas pelo vírus, então nos arrependamos e busquemos a graça de Deus. Caso não haja uma relação específica, busquemos a graça santificadora de Deus por meio do sofrimento que pode nos acometer.

Corporativamente, Deus está purificando sua Igreja. Como cristãos, de modo rebelde e reiterado profanamos o Santo Dia do Senhor com trabalho e entretenimento (que Deus relaciona com a idolatria, Ez 20.13-16); por causa do vírus, agora muitos estão proibidos de sair para trabalhar ou se divertir em todos os dias da semana.

Cada vez mais a Igreja substitui a santa adoração pelo entretenimento. Agora Deus fechou as portas de nossas igrejas. O povo de Deus parece estar satisfeito em ter apenas um culto no Dia do Senhor; então, Deus removeu todos os cultos. Temos recebido levianamente os privilégios do culto como congregação; temos sido impedidos de adorar corporativamente.

Qual será, então, a nossa resposta? A seguir ofereço seis exortações:

1) Não olhe para aqueles que sofrem com um olhar de justiça própria. Comece com você mesmo; arrependa-se (Lc 13.1-5). Arrependa-se, individualmente, dos seus pecados; e arrependa-se, corporativamente, dos pecados da Igreja e do nosso país.

2) Busque a graça santificadora de Deus para sua própria vida. Não desperdice sua tribulação. Ore para que Deus trabalhe em sua vida por meio dessa provação. Lembre-se de que o Senhor prometeu que tudo isso coopera para o seu bem (Rm 8.28).

3) Peça a Deus que, na sua ira, lembre-se da misericórdia. Ore para que ele retenha sua mão de juízo e conceda graça. Ore para que muitos venham ao conhecimento salvífico do Senhor Jesus Cristo através dessa pandemia. Ore pedindo oportunidades de falar com seus vizinhos sobre a santidade e a graça de Deus. Ore pelas transmissões ao vivo dos cultos. Muitas pessoas que não iam aos cultos regulares da igreja agora estão ouvindo o evangelho.

4) Ore pelas pessoas que, em todo o mundo, estão agora gravemente doentes. Ore para que Deus poupe essas vidas. Ore por aqueles que não dispõem de provisão de suas necessidades básicas para a vida cotidiana. Ore para que não haja uma recessão econômica mundial.

5) Não fique ansioso. Deus cuidará de você (Mt 6.25-44; Fp 4.4-7). Descanse no cuidado amoroso de seu soberano Salvador. Agradeça a Deus por tudo o que ele está operando. Ao orar, lembre-se da definição de oração do Breve Catecismo de Westminster, Pergunta 98: “O que é Oração? A Oração é um santo oferecimento dos nossos desejos a Deus, por coisas conformes com a sua vontade, em nome de Cristo, com a confissão dos nossos pecados, e um agradecido reconhecimento das suas misericórdias.”

6) Durante o período de isolamento e quarentena, podemos aumentar a empatia por nossos irmãos e irmãs ao redor do mundo que não tiveram condições de se reunir no Dia do Senhor para a adoração corporativa por causa de perseguições. O que para nós é algo comum, para eles seria um privilégio. Portanto, lembre-se deles e ore por eles.

Dr. Joseph A. Pipa, Jr., Presidente e Professor de Teologia Sistemática e Homilética do Greenville Presbyterian Theological Seminary, EUA.

Extraído do site @Puritanos


Sem o Sinal, mas não sem o Significado - Rev. André Silvério




Desde a minha conversão, nos anos 90, é a primeira vez que não irei participar da Ceia do Senhor, e por um motivo realmente justificável. Eu imagino que será algo realmente lamentável não ter aquele momento tão especial. Acredito ainda que este será o sentimento de todo crente verdadeiro no próximo domingo. Infelizmente, temos notícias de que algumas igrejas desavisadas “celebrarão virtualmente” a Ceia do Senhor, como se isso realmente fosse possível. É uma grande contradição, uma vez que a Ceia, além de tudo, é símbolo de comunhão, no contexto do povo da aliança reunido em culto público. Diante dessa situação tão difícil, o que devemos ter em mente?

Em primeiro lugar, precisamos considerar que a Ceia do Senhor é um sacramento – uma santa instituição de Cristo – contudo, a Ceia (bem como o batismo) não é absolutamente necessária à salvação. Não é a participação nela que manterá segura a salvação do crente. Quanto a isso, podemos ficar totalmente tranquilos e confiantes na eficácia da obra redentora de Jesus Cristo. 

Em segundo lugar, o sacramento da Ceia é um elemento exterior e visível. Sendo a Ceia um sinal, ela aponta para algo significado. Este algo constitui a substância interior do sacramento, como muito bem afirmou Louis Berkhof. Portanto, participar da Ceia é muito mais do que meramente comer um pedaço de pão e tomar um cálice de vinho. Sabiamente, a nossa Confissão de Fé diz que “os que comungam dignamente, participando exteriormente dos elementos visíveis deste sacramento, também recebem intimamente, pela fé, a Cristo crucificado e todos os benefícios da sua morte, e nele se alimentam, não carnal ou corporalmente, mas real, verdadeira e espiritualmente, não estando o corpo e o sangue de Cristo, corporal ou carnalmente, nos elementos pão e vinho, nem com eles ou sob eles, mas espiritual e realmente presentes à fé dos crentes nessa ordenança, como estão os próprios elementos aos seus sentidos corporais.” (CFW 29, 7). A Ceia transcende o visível e nos leva ao invisível – à comunhão espiritual com Cristo.

Em terceiro lugar, embora estejamos “impedidos” de participar do sinal (o pão e o vinho), não estamos separados do seu significado – a morte de Cristo em nosso lugar. Eu creio que seja uma excelente oportunidade para que relembremos o sacrifício de Cristo em nosso lugar, mesmo sem a mesa posta diante dos nossos olhos. E, para isso, temos a proclamação da Palavra que exalta a obra de Jesus. Mesmo sem Ceia, devemos examinar o nosso coração (1Co 11.28), confessar os nossos pecados, buscar a misericórdia do Senhor, perdoar os nossos irmãos faltosos e, sobretudo, anelar pelo dia no qual estaremos, novamente, diante da mesa do Senhor, lado a lado com nossos irmãos.

Lembre-se de que, embora você esteja separado momentaneamente da Ceia, isto é, do sinal, nunca estará realmente separado de Cristo, da sua obra e do seu amor sacrificial, o real significado da Ceia. Amém!

Ceia virtual On-line? Como a exegese pode ajudar? Rev. João Paulo Thomas de Aquino



Vejam como a teologia é dinâmica! Com o passar do tempo novas perguntas surgem e perguntas antigas são feitas de formas diferentes. Para todas as respostas, a Bíblia deve continuar sendo a nossa única regra de fé e de prática. Uma pergunta que atualmente tem dividido teólogos ao redor do mundo é a seguinte: Considerando o atual estado de distanciamento social por causa do novo Coronavírus e a possibilidade de fazermos reuniões virtuais, é correto ministrar a Ceia do Senhor online? Esse pequeno artigo visa a contribuir para a discussão apresentando alguns aspectos exegéticos do texto de 1 Coríntios 10 e 11.
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1) O verbo grego συνέρχομαι (synércomai).
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O verbo grego συνέρχομαι (synércomai) é muito importante no texto clássico da Ceia do Senhor, 1 Coríntios 11.17-34, pois ele aparece 5 vezes, nos versículos 17, 18, 20, 33 e 34. O verbo significa “reunir-se com outros como um grupo, ajuntar, agregar” (BDAG). A palavra é formada pela preposição syn, que significa “com” e pelo verbo ércomai, que significa “ir, vir”. É por isso, que a palavra também tem outros significados tais como “vir ou ir junto com uma ou mais pessoas, viajar junto com alguém” e “unir-se em relacionamento íntimo, ajuntar-se em um contexto sexual” (BDAG). Vejamos as ocorrências do verbo no texto em português:
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17 Nisto, porém, que vos prescrevo, não vos louvo, porquanto vos ajuntais não para melhor, e sim para pior.
18 Porque, antes de tudo, estou informado haver divisões entre vós quando vos reunis na igreja; e eu, em parte, o creio.
20 Quando, pois, vos reunis no mesmo lugar, não é a ceia do Senhor que comeis.
33 Assim, pois, irmãos meus, quando vos reunis para comer, esperai uns pelos outros.
34 Se alguém tem fome, coma em casa, a fim de não vos reunirdes para juízo. Quanto às demais coisas, eu as ordenarei quando for ter convosco.
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Note que o uso do verbo acontece no começo do texto (v. 17, 18 e 20) e no final (v. 33 e 34), formando assim uma moldura que “abraça” todo o texto e destacando por meio da estrutura a importância do conceito.[1] Note que, além do uso do verbo no versículo 18, Paulo qualifica essa reunião como sendo uma reunião “na igreja” (συνερχομένων ὑμῶν ἐν ἐκκλησίᾳ). Os irmãos coríntios se reuniam em casas, nas casas das pessoas mais abastadas da comunidade, ainda assim, quando eles estavam reunidos, era ali que estava presente a igreja. No versículo 20, Paulo qualifica a reunião como sendo “no mesmo lugar” (Συνερχομένων οὖν ὑμῶν ἐπὶ τὸ αὐτὸ), novamente enfatizando a ideia que o verbo já deixava clara.
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2) O problema enfrentado pelos Coríntios na ceia
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O grande problema do qual Paulo está tratando ao escrever esse trecho é que os Coríntios haviam transformado a Santa Ceia em um momento de divisão em vez de comunhão. Paulo diz que eles estavam se ajuntando “não para melhor, e sim para pior”. A NVI interpreta corretamente essa expressão de Paulo dizendo “as reuniões de vocês mais fazem mal do que bem”. O problema é que havia divisões (σχίσματα, skísmata) entre os coríntios quando comiam a ceia (v. 18). Durante a ceia eles se dividiam em partidos, facções (αἱρέσεις, hairésseis). Paulo torna o problema totalmente explícito no versículo 21: “Porque, ao comerdes, cada um toma, antecipadamente, a sua própria ceia; e há quem tenha fome, ao passo que há também quem se embriague”. Na época do Novo Testamento, a Santa a Ceia era uma refeição mesmo. Aparentemente, as próprias pessoas levavam a comida para compartilharem. O que parece acontecer em Corinto é que as pessoas não compartilhavam o que haviam levado (cada um toma a sua própria ceia, (ἕκαστος γὰρ τὸ ἴδιον δεῖπνον προλαμβάνει ἐν τῷ φαγεῖν). O momento havia deixado de ser a Ceia “do Senhor” (v. 20) para ser a ceia própria “de cada um” (v. 21). Essa divisão fica clara também no fato de que eles faziam isso com uma pressa enorme, cada um tomava a sua própria ceia “antecipadamente” (προλαμβάνει). Ou seja, em vez de esperarem uns pelos outros, aqueles que tinham mais condições financeiras parece que começavam a refeição antes dos mais pobres chegarem.
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O triste resultado é que na festa máxima da comunhão da igreja, as pessoas de melhor condição financeira ficavam empanturradas e bêbadas e aqueles que condição social mais baixa passavam fome! Dessa forma, a igreja era desprezada e aqueles que nada tinham (τοὺς μὴ ἔχοντας), ou seja, os pobres, eram envergonhados. Esse tipo de desprezo da comunhão e da unidade da igreja no momento da ceia estava causando o enfraquecimento e até mesmo a morte de alguns membros da igreja coríntia (v. 30).
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Qual é a solução proposta pelo apóstolo? A solução de Paulo no final do texto (v. 33 e 34) é que os coríntios esperassem uns pelos outros (ἀλλήλους ἐκδέχεσθε) e matassem a fome em suas próprias casas (ἐν οἴκῳ ἐσθιέτω) a fim de não se reunirem para juízo.
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3) O Significado da Santa Ceia em 1 Coríntios 10
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Não é só em 1 Coríntios 11.17-34 que Paulo fala sobre a Santa Ceia, mas em 1 Coríntios 10 o apóstolo também ensina sobre esse maravilhoso sacramento. Em 1 Coríntios 8 a 10, Paulo está ensinando sobre se o cristão pode ou não comer comida sacrificada a ídolos. Nesse contexto, Paulo fala sobre o antigo Israel e diz que eles foram batizados no mar (1Co 10.1-2) e eles também tomaram uma espécie de Santa Ceia (1Co 10.3-4). No entanto, isso não os impediu de serem mortos e espalhados pelo deserto por se envolverem com idolatria e festas pagãs.
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Quando Paulo vai aplicar os exemplos do antigo Israel (1Co 10.1-13) para a igreja (1Co 10.14-22), ele foca totalmente na Santa Ceia e no absurdo de alguém que participa da comunhão do pão e do cálice querer participar também de festas pagãs com comidas dedicadas a ídolos. O versículo central da argumentação de Paulo é 1Co 10.16: “Porventura, o cálice da bênção [τὸ ποτήριον τῆς εὐλογίας] que abençoamos [ὃ εὐλογοῦμεν] não é a comunhão [κοινωνία] do sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão [κοινωνία] do corpo de Cristo?”
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O apóstolo está argumentando que quando participamos da Ceia do Senhor, nós estamos de alguma forma, nos tornando ainda mais participantes do corpo e do sangue de Cristo, ou seja, eles estão se tornando comuns a nós, são-nos comunicados espiritualmente. Na Santa Ceia existe uma transação espiritual acontecendo. O celebrante abençoa os elementos e esses elementos levam a bênção para o povo de Deus e essa bênção diz respeito a uma participação maior no sangue e no corpo de Jesus Cristo e os benefícios que estes nos trazem.
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Em todo esse trecho (1Co 10), Paulo se refere aos elementos da Santa Ceia e suas referentes no singular: “comeram um só manjar espiritual” (1Co 10.3), “bebiam da mesma fonte espiritual” (1Co 10.4), “bebiam de uma pedra espiritual” (1Co 10.4); “o cálice da bênção que abençoamos” (1Co 10.16); “o pão que partimos” (1Co 10.16), “um pão, um só corpo… único pão” (1Co 10.17); “o cálice do Senhor” (1Co 10.21) e “a mesa do Senhor” (1Co 10.21).
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Por meio dos conceitos de bênção (eulogia), comunhão (comunalidade, koinōnia) e insistente singular nos elementos, Paulo está deixando claro que o significado profundo e sobrenatural da Santa Ceia diz respeito a uma comunhão e unidade que os cristãos têm com Cristo e consequentemente entre si.
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4) O Significado da Santa Ceia em 1 Coríntios 11
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O capítulo 11 de 1 Coríntios mostra uma riqueza imensa no que concerne aos significados e aplicações práticas da Santa Ceia. O texto fala da Ceia como um momento de obediência (1Co 11.23-25), unidade cristã (1Co 11.23-25), rememoração do sacrifício vicário de Cristo (1Co 11.23-25), proclamação da morte substitutiva do Senhor (1Co 11.26), esperança da parousia (volta) de Jesus (1Co 11.26) e autoexame (1Co 11.28). Explorar cada um desses significados extrapolaria os nossos objetivos nesse artigo, então focaremos naquele que mais diz respeito ao nosso assunto.
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O que Paulo quer dizer pelas expressões “comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente”; “Examine-se, pois, o homem a si mesmo” e por “quem come e bebe sem discernir o corpo”. É evidente no texto que essas expressões estão inter-relacionadas. Devemos examinar a nós mesmos para não comermos sem discernir o corpo, o que seria sinônimo de comer e beber indignamente. Fazê-lo, atrai juízo. Mas, o que é isso?
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Considerando o que vimos nos pontos 1 e 2 desse artigo, comer indignamente, ou seja, sem discernir o corpo é comer de tal forma a desprezar a unidade do corpo de Cristo. Os coríntios comiam de forma indigna quando desprezavam a unidade e comunhão do corpo de Cristo na hora da ceia, fazendo com que a igreja se dividisse em partidos por questões socioeconômicas. O autoexame recomendado por Paulo, dessa forma, não diz respeito a um exame pessoal a respeito dos mais diversos pecados que porventura o participante tenha cometido, mas é uma ordem para avaliar se em nossa maneira de agir temos desprezado a comunhão e unidade que devem caracterizar o Corpo de Cristo, ou seja, a Igreja.
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Apontamentos Finais
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O principal assunto da Santa Ceia, conforme apresentada por Paulo em 1 Coríntios, diz respeito à união do Corpo de Cristo. Vimos que essa união dizia respeito (1) ao ajuntamento; (2) a lutarem contra divisões humanas, (3) à comunhão de todos com o único pão que é Cristo e (4) ao dever de se examinar se estamos sendo dignos do corpo de Cristo (igreja) ao comermos.
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  • Essa análise, mostra que devemos pensar criticamente a respeito da maneira habitual da ceia em nossas igrejas: cada crente com um pequeno cálice e um pequeno pão, previamente preparados, examinando os seus próprios pecados de maneira individual. À luz do nosso texto, seria esta é a melhor maneira de celebrarmos esse sacramento cheio de significado e realidade sobrenatural? Ou será que a nossa maneira habitual já não é individualista demais?
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  • Em uma possível “Ceia virtual” não estaríamos reunidos (em assembleia e no mesmo lugar), os aspectos da unidade ficariam esfacelados à medida em que não estaríamos comendo de um mesmo pão e bebendo de um mesmo cálice; a noção de corpo de Cristo estaria prejudicada por causa da distância física.
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Assim, à luz de tudo o que vimos, parece-nos, também, que uma celebração da Santa Ceia na qual cada cristão está em sua própria casa, prepara o seu próprio pão e come e bebe enquanto participa do “culto on-line” não faz justiça a toda a riqueza de significado que Paulo atribui à ceia, nem as instruções práticas transmitidas por Jesus para o apóstolo.

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