Caros
amigos,
Vocês já comeram purê de batata com sabor de
frango assado? Imagino que sim, especialmente se foi regado com o caldo de um
frango assado. Até aí nada demais. Mas já encontrei quem me dissesse que ouviu
falar de um purê de batata feito só com frango e que ficava com o aspecto de
batata amassada e mantinha o gosto de frango assado. Recebi a explicação que o
frango tinha sido criado só à base de batata, por isso sua carne podia se
transformar em purê. Se havia visto e comido do purê, respondeu-me que não, mas
que era verdade, porque alguém lera em algum lugar. Guardei a informação, mesmo
sabendo ser altamente improvável tal mistura, e calei-me por respeito à tenra
idade do interlocutor. Quando muito jovem também já defendi idéias ainda mais
disparatadas.
De certa forma este episódio faz-me voltar
para a área na qual trabalho e refletir sobre as mistura impossíveis que muitas
pessoas afirmam sem qualquer conhecimento de causa. Ensino e pesquiso uma área
da físico-química que, por força de seus postulados, me obriga a ver a realidade
de forma mais fluída e elástica, com várias camadas e nuances, e até por vezes teorizações
de mundos dentro de mundos (reflito com uma pitada de sarcasmo se não há mundos
onde frangos tenham a textura de purês de batata).
Refiro-me naturalmente à mecânica quântica,
que devido às suas peculiaridades, postula um conceito de realidade que escapa
ao senso comum. Neste estranho e admirável mundo novo pequenos corpos podem
estar em dois lugares ao mesmo tempo, transpor paredes intransponíveis, trocar
informações instantaneamente, ir de um ponto a outro sem passar por um meio
termo, apresentar mais de uma natureza fundamental e até exibir todas as muitas
possibilidades, simultaneamente, de um mesmo fenômeno. Estados que fogem à
noção clássica do que é real, do que é físico, do que temos por senso comum.
Por ser um campo fértil em bizarrices físicas,
a quântica foi alçada ao patamar de ciência esotérica e utilizada
indiscriminadamente por quem quer que queira uma explicação dita sofisticada
para qualquer área do conhecimento. Os princípios são usados liberalmente por
vários grupos profissionais, sem nenhum pejo pela falta de fidelidade aos conceitos
e pesquisas acumulados em pouco mais de cem anos de pesquisa. Há livros sobre a
empresa quântica, o chefe quântico, a inteligência quântica, filosofia
quântica, o poder quântico da fé, quântica na cama, práticas quânticas
espirituais, carma e quântica, ressonâncias quânticas com suas vidas passadas e
até lições sobre Jesus e a física quântica, inclusive o porquê do mandamento
cristão sobre o perdão ter bases na mecânica quântica (?!). Uma viagem só! e
pura perda de tempo e enganação. Se pudesse dar um rótulo a essas bobagens
diria que é esoterismo supersticioso e auto-ajuda rasteira, apresentada em
embalagem sofisticada com o uso de termos fora do contexto. Tenho minhas razões
para assim o afirmar.
Certa vez, convidado a participar de um grupo
sério de pesquisa interdisciplinar (pelo menos assim achava) sobre teologia,
filosofia e ciências, credenciado pela CAPES, ouvi estupefato a defesa da tese
esdrúxula acerca das propriedades milagrosas dos florais devido às frequências quânticas das flores
colhidas em determinada época do ano. Fui obrigado a ouvir uma aprendiz de
pseudociência dissertar sobre a farmácia quântica de seu marido, frequências
quânticas e sua relação com fé e ciência. Uma bobagem só. Para completar ainda
me indagaram acerca destas mesmas frequências na cura do câncer, e como elas se
processam nos remédios à base de produtos naturais. Tive de explicar o que era
mecânica quântica e o quanto os conceitos ali propalados estavam distantes
daqueles oriundos da ciência, mostrei que beiravam a crendices medievais e conversa
de mesa de bar em fim de noite. Naturalmente que nunca mais voltei ao referido
grupo, tanto por completa falta de vontade como da mais pura falta de convite. Ironicamente
quase uma complementaridade quântica.
Em outra ocasião, dando uma palestra sobre fé
e ciência, em uma igreja, e tocando de leve nesta questão, alguém me
interrompeu com a acusação que eu nada sabia de quântica, termodinâmica e
relatividade, passando a discorrer por quase vinte minutos (de minha palestra)
sobre seu entendimento “iluminado” acerca destas áreas da física e a relação
com sua fé pessoal. Perguntei-lhe, um tanto irritado, ao fim de sua
interrupção, qual era sua formação, o qual me respondeu com certa dose de
arrogância: sou um autodidata, não tenho formação universitária, mas minha fé
me faz ver além, sua visão por outro lado é do diabo! Fui obrigado, qual
insensato, a mostrar minhas credenciais e impor minha formação, com mestrado e
doutorado na área, bem como minha visão cristã reformada da fé. Conclui que
suas percepções acerca de vários conceitos de física continham erros crassos de
interpretação e que não eram aceitáveis e, juntamente com sua interpretação
rasa das Escrituras, beiravam a panfletagem ideológica pseudocientífica. Alguns
da platéia o defenderam com a obscura idéia que ninguém sabia tudo de física e
só porque eu tinha um doutorado na área não implicava que sabia mais que o
irmão autodidata, cujas idéias eram tão válidas quanto as minhas - um franco
retrato do pós-modernismo de nossa geração, onde tudo é válido e só depende da
maneira como contamos a história, segundo nossa percepção pessoal. Defendi
ferozmente que nesta área de atuação a formação fazia completa diferença,
devido a complexidade dos conceitos envolvidos e a facilidade com que somos
enganados pela familiaridade com que os termos são disseminados na mídia. O
resto da palestra foi tenso e penoso. Naturalmente também nunca mais fui
convidado.
Por outro lado, em outra ocasião palestrando
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul para uma grande platéia científica
acerca do entendimento filosófico entre Fé e Ciência, fui interrompido por um irritado
pesquisador que afirmou que a Bíblia estava completamente errada e que a fé era
uma bobagem – o estranho que a palestra sequer tocava sobre o tópico Bíblia,
Deus ou Cristianismo. Perguntei-lhe pacientemente quantas vezes tinha lido a
Bíblia e se poderia me indicar um dos erros que certamente havia encontrado.
Respondeu-me que nunca havia lido a Bíblia, mas sabia (como??) que estava
errada. Eis o retrato do suicida intelectual: sei porque acho que sei e não preciso dar as razões de minha opinião
sem conhecimento de causa. Respondi-lhe, cansado, que sua posição não era
científica, pois não se propunha a investigar honestamente as fontes para saber
se de fato as coisas eram como afirmava e que seu discurso era na verdade um
dogma de fé. Respondeu-me com grande desprezo que a ciência não precisava de
fé. Para encerrar o assunto disse-lhe com muita seriedade: “Há algum físico
aqui presente que possa explicar plenamente a natureza dual da luz? Há? Não
há!! Temos mais de cem anos de quântica e não sabemos explicar a existência de
naturezas tão diversas em um único fenômeno. Postulamos essa realidade dual na
falta de uma explicação. Aceitamo-la por fé!! Não venha me dizer que ciência
prescinde de fé, pois só mostra o quão pouco entende de Ciência”. Terminada a
palestra fui rodeado de jovens pesquisadores e universitários querendo saber
mais acerca de relação entre fé e ciência e pude conversar mais uns quarenta
minutos e tirar algumas dúvidas pontuais. Tudo terminou esplendidamente bem.
No entanto, poderia ainda citar a vez em que
um aluno de doutorado tentou me fazer engolir a idéia que água quanticamente
tratada por RMN poderia ser usada como remédio universal por suas frequências
quânticas (sempre elas), ou a de outro colega que achava sinceramente que a
vida era apenas um algoritmo em um supercomputador quântico cósmico ou mesmo do
aluno maluco em São Carlos que só andava vestido de sobretudo preto de couro convencido
que o filme Matrix tinha trazido à tona a real verdade acerca de nossa
realidade quântica e que só ele estava vendo a “verdadeira realidade” – era um
novo Neo em meio a milhões submersos
no sistema. Afff!
Por que trago a baila esse assunto e estes
pequenos episódios? Talvez porque esteja cansado de tanta confusão e baboseira,
especialmente quando se trata de teologia, quântica e a relação entre ciência e
fé. Certamente que a realidade vai muito além dos postulados da mecânica
quântica e tantos outros modelos científicos e a fé muito além do nosso (muitas
vezes superficial) entendimento da Deidade, mas isso não nos habilita a
propagar nossas opiniões como se fossem dogmas sem a devida reflexão abalizada
e desrespeitando as fontes legítimas destas áreas de conhecimento.
É sempre temerário achar que o cruzamento da
galinha com a batata resultará em purê com gosto de frango assado e ainda
propagar a informação como verdade. Pode até dar pano para uma boa conversa de
fim de noite em bar para os que já estão com mente embotada, mas para os de
mente lúcida será sempre uma bobagem, fruto de uma mente infantil que ainda não
aprendeu a pensar.
Um abraço quântico (e isso existe?) a todos!
nEle e somente nEle...
Kelson*
*Kelson Mota T. Oliveira tem mestrado e doutorado em Físico-Química pela USP. O texto foi publicado com autorização.
3 comments:
Artigo esclarecedor!
Muito bom. Raramente encontramos lucidez em qualquer lugar. Apesar de nao ser o que eu procurava, é uma boa introdução. O que eu queria era o livro depois dessa introduçao... se souber onde encontro, por favor me mande arquitetoishida@gmail.com... mas ja li bastante da base :)
muito bom, parabens, eu sou cristao, nasci em lar evangelico, e comecei a escutar essa conversa de mecanica quantica, que o universo nos atende, a lei da atraçao...e Deus, se ele eh o Criador de todas as coisa? so Ele pode me atender
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