No
segundo século, um herege chamado Marcião ensinou uma forma de gnosticismo
cristão. Ele distinguia entre o Deus do Antigo Testamento e o Deus revelado em
Jesus Cristo. Ele negava que Cristo fosse verdadeiro homem e também rejeitava o
casamento. Visto que muitas de suas doutrinas eram contrárias ao Antigo
Testamento e porções do Novo, ele desenvolveu seu próprio cânon (livros aceitos
da Bíblia). A Bíblia de Marcião incluía só um Evangelho editado de Lucas e dez
das Epístolas de Paulo. Nem é preciso dizer que, se o indivíduo edita a Bíblia,
ele pode conseguir que ela diga o que ele quer.
Hoje,
um grande número de cristãos está editando suas próprias Bíblias. Mesmo que
teoricamente aceitem o Antigo Testamento como parte da Bíblia, basicamente
ignoram seu ensino ético. Crêem na sua história, apontam para suas profecias
que foram cumpridas em Cristo, mas insistem que suas doutrinas e regras devem
estar repetidas no Novo Testamento para que sejam imperativas para a igreja de
hoje. Para todos os efeitos, eliminam da Bíblia grande parte do Antigo
Testamento.
Em
resposta, os teólogos pactuais reformados afirmam a unidade da Bíblia: que tudo
que o Novo Testamento não revoga permanece efetivo. Por exemplo, muito daquilo
que os cristãos crêem e ensinam sobre o casamento e a família está revelado no
Antigo Testamento. A doutrina nossa do pacto e do lugar de nossos filhos no
pacto se baseia, em parte, nos procedimentos de Deus com seu povo nas
Escrituras do Antigo Testamento. De modo semelhante, os alicerces da doutrina
do sábado como instituição cristã foram construídos nas Escrituras do Antigos
Testamento. Buscamos estabelecer, a partir de Gênesis 2.1-3 e Êxodo 20.8-11,
que a observância do sábado é uma exigência moral permanente. Essa convicção é
confirmada na gloriosa promessa de Isaías 58.13,14. Portanto, a não ser que o
Novo Testamento revogue essa ordenança, ela permanece em vigor. Alguns sugerem
que Jesus anulou a observância do sábado em Mateus 12.1-14; já vimos,
entretanto, que Jesus restaurou o sábado e nos deu diretrizes de grande auxílio
pelos quais devemos examinar nosso comportamento nesse dia.
O ensino de Paulo
Há
outros que sugerem que o apóstolo Paulo repudiou a idéia da observância do
sábado. Esses adversários do sábado neotestamentário baseiam seus argumentos em
três textos. O primeiro é Romanos 14. 5,6:
“Um faz
diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha
opinião bem definida em sua propriamente. Quem distingue entre dia e dia para o
Senhor o faz; e quem come para o Senhor come, porque dá graças a Deus, e quem
não come para o Senhor não come e dá graças a Deus”.
O
segundo é Gálatas 4.10, 11:
“Guardais
dias, e meses, e tempos, e anos. Receio de v6s tenha eu trabalhado em vão para
convosco”. [NT]
O
terceiro é Colossenses 2.16, 17:
“Ninguém,
pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou
sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir, porém o
corpo é de Cristo”.
Os
adversários da guarda do sábado mantêm que a igreja neotestamentária não é mais
obrigada a observar um dia especial, e existem alguns que vão mais longe para
dizer que observar o sábado no primeiro dia da semana é uma forma de judaizar.
De acordo com eles, guardar o sábado rouba da pessoa a liberdade cristã; um
indivíduo pode observar o dia que preferir, mas não pode exigir que outros o
observem.
Essa
visão se deve a um mal-entendido do que Paulo está dizendo nessas passagens. O
texto-chave para o entendimento da visão de Paulo é Colossenses 2.16, 17. Essa
passagem não só nos ajuda a compreender a abordagem de Paulo aos “dias”, como
também ensina que não podemos observar o sábado judeu ( ou judaico) do sétimo
dia. Em outras palavras, Paulo anula a observância do sétimo dia, mas não o
princípio envolvido na lei do sábado.
Uma
rápida verificação do contexto nos ajudará a entender corretamente a proibição
de Paulo. No livro de Colossenses, Paulo está contra-atacando uma heresia
híbrida que combinava a doutrina judaizante da salvação pelas obras, que
incluía a observância da lei cerimonial com a filosofia ascética do
agnosticismo, que ensinava que Cristo era uma emanação de Deus por intermédio
de uma série de seres divinos menores, com a adoração dos anjos e a abstinência
de certas comidas e prazeres materiais e físicos.
Em
Colossenses 2, Paulo estabelece a autoridade suprema do Senhor Jesus Cristo
como Salvador e Legislador. Ele ensina que nós não servimos Cristo pela
obediência a leis, tradições e cerimônias de fabricação humana. Além disso, não
chegamos a conhecer Deus por meio da filosofia do mundo, mas sim por meio da
revelação de Deus nas Escrituras. À luz dessas coisas ele diz: “Ninguém,
pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou
sábados”. Na primeira metade do versículo, ele trata da
afirmação de que, por serem certos alimentos imundos, os verdadeiramente santos
irão se abster de comê-los. Mais tarde Paulo faz referência às doutrinas
ascéticas a que ele se opõe:
“...ordenanças:
não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro -segundo os
preceitos e doutrinas dos homens ? Pois que todas estas coisas, com o uso, se
destroem. Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si
mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético, todavia, não têm valor contra
a sensualidade” ( CI 2.20-23 ).
Nessa
passagem, ele repudia todo ensino ascético sobre alimentos. A Escritura ensina
claramente que um cristão pode comer e beber com moderação qualquer coisa que
Deus tenha dado (81 104.15, Mc 7.19; 1Tm 4.3-6).
No
versículo 16 (em Cl 2), Paulo trata do assunto dos dias: “Ninguém
vos julgue por causa de dia de festa, ou lua nova, ou sábados”.
Está Paulo anulando a observância do sábado como tal, ou a observância do
sábado do sétimo dia junto com os outros dias cerimoniais? Encontramos a
resposta a essa pergunta ao examinarmos os três termos que Paulo usa: “dia
de festa ou lua nova ou sábado (ou dias de sábado)”. Esses três
termos são usados frequentemente no Antigo Testamento para descrever os vários
dias cerimoniais que o povo de Deus era obrigado a observar.
Por
exemplo, 2 Crônicas 31.2,3, descrevendo as reformas de Ezequias, diz:
“Estabeleceu
Ezequias... a contribuição que fazia o rei da sua própria fazenda... destinada
para os holocaustos, para os da manhã e os da tarde e para os holocaustos dos
sábados, das Festas da Lua Nova e das festas fixas, como está escrito na lei do
Senhor”.
E com
respeito às reformas de Neemias, ouvimos:
“Também
sobre nós pusemos preceitos, impondo-nos cada ano a terça parte dum siclo para
o serviço da casa de nosso Deus: para os pães da proposição, e para a contínua
oferta de manjares, e para o contínuo holocausto dos sábados e das Festas da
Lua Nova, e para as festas fixas, e para as coisas sagradas...”
(Ne 10.32,22).
A
tradução grega desses trechos (na chamada Septuaginta) usa exatamente os três
termos que Paulo usa em Colossenses 2.16.
Levítico
23 faz um comentário detalhado desses termos. Nesse capítulo, Moisés coloca o
calendário litúrgico todo da igreja do Antigo Testamento. Os versos 1-3 tratam
do sábado semanal:
“Fala
aos filhos de Israel e dize-Ihes: As festas fixas do Senhor; que proclamareis,
serão santas convocações; são estas as minhas festas. Seis dias trabalhareis,
mas o sétimo será o sábado do descanso solene, santa convocação; nenhuma obra
fareis; é sábado do Senhor em todas as vossas moradas”.
À luz
disso, vemos que Paulo usa o termo “dias de sábado” para incluir o sábado do
sétimo dia.
Nos
versículos 4 a 44 do capítulo 23, Moisés explica as grandes festas da igreja do
Antigo Testamento: a Páscoa, ao qual está ligada a Festa dos Pães Asmos, a
Festa do Pentecostes e a Festa dos Tabemáculos. Paulo chama estas pelo termo
“festas”.
Além disso, em Levítico 23.24, 25, Moisés legisla observâncias especiais a
serem realizadas no dia primeiro do mês:
“Fala
aos filhos de Israel, dizendo: No mês sétimo, ao primeiro do mês, tereis
descanso solene, memorial, com sonidos de trombetas, santa convocação. Nenhuma
obra servil fareis, mas trareis oferta queimada ao Senhor”.
Paulo
tem em mente essa observância quando usa a frase “luas novas”. Assim, com essas
três frases, Paulo está descrevendo os dias cerimoniais e sábados do Antigo
Testamento, e diz que o cristão não fica sob nenhuma obrigação de observar
esses dias.
Essa
instrução era necessária no tempo da transição da Antiga Aliança à Nova. Muitos
cristãos judeus continuavam a observar as festas e dias especiais da Antiga
Aliança. Embora não estivessem sob nenhuma obrigação de fazer assim, já que
Cristo cumpriu o que essas festas comemoravam, adoravam-no por meio delas.
Durante esse tempo de transição, estavam livres para agir assim. Não foi isso
mesmo que Paulo estava fazendo quando foi preso em Jerusalém (At 21.26)? Antes,
havia dito que queria estar de volta a Jerusalém a tempo para a Festa de
Pentecostes (At 20.16). Embora Pentecostes não fosse uma celebração cristã,
durante o período de transição da adoração da Antiga Aliança à adoração da Nova
Aliança, os apóstolos e outros cristãos judeus observavam-no para celebrar a
obra salvífica de Cristo. Da mesma forma, hoje alguns judeus convertidos com
frequência celebram ainda a Páscoa em família para refletir sobre Cristo como
o verdadeiro cordeiro Pascoal.
Uma sombra do que virá
Alguns,
entretanto, sob o mesmo zelo mal-orientado que motivou os judaizantes a
exigirem que os gentios fossem circuncidados, estavam procurando impor esses
dias aos cristãos gentios. Em resposta, Paulo repudia qualquer observância
obrigatória dos dias religiosos ou festas judaicas, afirmando que a Igreja não
poderá exigir a observância de nenhum dia cerimonial do Antigo Testamento,
porque foram “sombra das coisas que haverão de vir, porém o corpo é de Cristo”
(C12.17). Paulo nos faz lembrar que os rituais do Antigo Testamento
prenunciavam a pessoa e obra do Senhor Jesus Cristo. [1] A pessoa e obra de
Cristo estão atrás de todas as observâncias cerimoniais do Antigo Testamento:
as festas, os sábados da lua nova e o sábado do sétimo dia como o original divino.
Desde a
eternidade, Deus, tendo nos escolhido em Cristo, planejou a encarnação e sua
grande obra da redenção. Desde o começo da História, quando Deus começou a
revelar sua verdade, Deus o Filho, na perspectiva da encarnação, salientou-se
acima de todas as coisas. A luz da revelação brilhou sobre ele e projetou uma
sombra sobre todos os eventos da revelação do Antigo Testamento. Na providência
de Deus, o adorador do Antigo Testamento não pôde ver Cristo claramente; essa
visão estava reservada para nós que vivemos na plenitude do tempo (Hb 1.1,2;
11.39,40). Mas por meio dos rituais e cerimônias eles viram, sim, sua sombra
poderosa e majestosa.
Assim,
todas as partes da adoração cerimonial faziam referência àquele que era a
substância. A luz da glória brilhava de tal maneira sobre o Cristo
pré-encarnado que sua sombra caiu sobre os i séculos por intermédio dos
sacrifícios, do tabernáculo, do templo, do sacerdócio, das escolas dos
profetas, dos reis de Israel, das festas, das luas novas dos dias de sábado.
Tomemos, por exemplo, o tabernáculo e o templo. João nos diz que a Palavra se
tornou carne e tabernaculou entre nós (Jo 1.14). Cristo afirmou que ele era o
templo verdadeiro (Jo 2.19), que cumpria tudo que o templo prometia. Ele é o
verdadeiro Deus que habita em meio do seu povo.
Depois
de seu advento, o templo foi se apagando até perder toda sua significância e
não ser mais necessário (10 4.21-24), porque com todas as suas festas e
sacrifícios era apenas uma sombra.
De
forma semelhante, cada um dos dias cerimoniais apontava para o Senhor Jesus
Cristo e seu relacionamento com seu povo. A Festa dos Tabernáculos lhes
lembrava que Deus era o Deus da salvação que livrara seu povo, e que eles eram
nada mais que peregrinos e viajores nesta terra que estavam indo adiante para
uma cidade celestial, indo da sombra para a realidade. No último dia da festa
(chamado o oitavo dia como tipo ou prenúncio da ressurreição), enquanto o
sacerdote derramava água, Jesus apontou para si: “No último dia, o grande dia
da festa, levantou-se Jesus, e exclamou:
“Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva” (1o 7.37, 38).
“Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva” (1o 7.37, 38).
A
Páscoa o retratava como o Cordeiro de Deus que veio para tirar o pecado do
mundo (Jo 1.29). Junto a essa figura temos a da Festa dos Pães Asmos, um
retrato de sua ressurreição (lCo 15.23). Exatamente na manhã em que o sacerdote
se punha de pé no templo e movia os primeiros pães de cevada (Lv 23.15-17),
Cristo surgia dos mortos, como os primeiros frutos, primícias dos que dormiram.
Pentecostes,
a grande festa da colheita, era a sombra do derramamento do Espírito Santo e o
ajuntamento das nações para o Senhor Jesus Cristo. Em Pentecostes os judeus
observavam a inauguração do pacto no Monte Sinai pelo qual foram feitos reino
teocrático de Deus. Portanto, o Pentecostes é cumprido na inauguração da igreja
do Novo Testamento com o derramamento do Espírito Santo e o começo da colheita
mundial do evangelho.
Israel
observava a lua nova com sacrifícios e ritual especial. O primeiro dia do mês
era visto como o sábado semanal. O retorno da lua nova provavelmente lembrava
ao povo a certeza eterna das promessas pactuais de Deus (Gn 8.21,22; Jr
31.35,36; 33.25,26). E porque Cristo cumpriu todas as promessas do pacto, ele
substituirá a luz do sol e da lua (Ap 21.23).
O sinal
de maior significância, contudo, foi o sábado do sétimo dia. Quando Adão caiu
em pecado, Deus deu a promessa do Salvador. Até que ele viesse, os santos do
Antigo Testamento permaneceriam sob a servidão, aguardando o dia de sua herança
(Gl 3.23- 26). No sábado do fim da semana, aguardavam a vinda do Messias, o
verdadeiro doador do descanso. Portanto, o dia que observavam, o sábado, era
sombra da vinda do Salvador. Quando ele veio, ele realmente fez parte de sua
obra expiatória no sábado do sétimo dia, ao ficar no túmulo, sofrendo morte e
sepultamento em lugar de seu povo. Quando ressurgiu no primeiro dia, entrou no
seu descanso.
Embora
Paulo não mencione o sábado do sétimo ano e o jubileu, eles também foram
cumpridos em Cristo. Como notamos no Capítulo 4, os sábados anuais não só
ensinavam o povo a confiar em Deus para sua subsistência, como também os
ensinavam a ansiar pelo dia quando a dívida do pecado será remida e os
prisioneiros do pecado libertados. Em Lucas 4.18, 19, Jesus, citando Isaías
61.1, 2, aplica a linguagem do jubileu a si mesmo.
Um dia em sete - o modelo que continua
Portanto,
o santo do Novo Testamento não é mais obrigado a observar os dias cerimoniais
do Antigo Testamento, nem o sétimo dia do Antigo Testamento. Mas repare que
nessa argumentação, Paulo nunca abre mão do dever moral de se observar um dia
em sete. Como vimos, na criação Deus estabeleceu a obrigação moral de se
guardar santo um dia em sete, e repetiu essa obrigação nos Dez Mandamentos,
junto com todos os outros grandes princípios da religião revelada. O dia em si,
no entanto, não foi parte da exigência moral da lei, e sim uma lei positiva
para regulamentar o cumprimento da responsabilidade moral. Portanto, o dia da
semana podia ser mudado. O Novo Testamento revoga a observância do sétimo dia,
mas nunca a obrigação de guardar um dia em sete como sábado do Senhor. [2]
Está
claro que a igreja primitiva continuou a observar um dia em sete. Por que não
adotaram outro modelo como cada terceiro dia, ou cada décimo dia? John Owen
responde a essa pergunta:
“E embora fique absolutamente certo que outro dia
poderia ter sido fixado sob o Novo Testamento, e não um em cada revolução
hebdomadária (de sete dias), por seus trabalhos próprios não terem sido bem
terminados em seis dias, contudo esse tempo sendo antes fixado e determinado
pela lei da criação. nenhuma inovação ou alteração seria permitida no assunto”.
[3]
Nem
existe qualquer prova de que algum intervalo tenha transcorrido entre a prática
do adorar no sétimo dia e o adorar no primeiro dia da semana. A igreja
neotestamentária, mantendo a norma de um dia em sete, imediatamente começou a
adorar no primeiro dia da semana. E mais, a prática do próprio Paulo confirma
que ele não está removendo a observância de um dia em sete, mas sim os dias
cerimoniais judaicos. Em Atos 20.7, ele adora com a igreja de Trôade no
primeiro dia da semana. Em 1 Coríntios 16.1,2 ele dá a entender que mandava
todas as igrejas recolherem sua oferta para os pobres no primeiro dia da
semana.
Um
entendimento correto de Colossenses 2.16, 17 também nos possibilita interpretar
Romanos 14.4-6. Nesse capítulo, Paulo está discutindo leis cerimoniais
judaicas. Como em Colossos, algumas pessoas em Roma estavam propondo a
observação de certas leis judaicas que diziam respeito a comida e dias santos.
Paulo diz que, embora as pessoas sejam livres para seguir as leis judaicas de
alimentos e dias santos, elas não poderão exigir que outros sigam tais leis.
Paulo, portanto, remove toda e qualquer obrigação de se guardar os dias santos
judeus.
Paulo
discute a relação do cristão para com a lei cerimonial judaica também em
Gálatas 4.10. A lista, “dias, e meses, e tempos, e anos” se refere às várias
observâncias cerimoniais do povo da Antiga Aliança, parte daquele velho sistema
ao qual os gálatas foram tentados a se tornar escravos.
Portanto,
Paulo nunca anulou a obrigação moral de separar um dia em sete para adorar a
Deus. O que ele fez foi revogar a prática dos sábados e dias cerimoniais do
Antigo Testamento. Vamos resumir o que dissemos até aqui nas palavras de R.L.
Dabney:
“Os fatos com os quais todos estamos de acordo, que
explicam o sentido dessas passagens do Apóstolo, são os seguintes: Depois de
estabelecida a nova dispensação, os cristãos convertidos dentre os judeus
geralmente combinavam a prática do judaísmo com as formas do cristianismo.
Observavam o dia do Senhor; o batismo e a ceia do Senhor; mas continuavam
também a guardar o sétimo dia, a páscoa e a circuncisão. A princípio era
proposto por eles impor esse sistema duplo sobre todos os cristãos gentios, mas
o projeto foi repreendido pela reunião dos apóstolos e presbíteros em
Jerusalém, registrado em Atos 15. No entanto, grande parte dos cristãos
judeus... continuava a observar as formas de ambas as dispensações, e os
espíritos inquietos dentre as igrejas mistas de convertidos judeus e gentios
estabelecidas por Paulo continuavam a tentar impor I isso também sobre os
gentios; alguns deles juntavam a essa I teoria ebionita a heresia mais grave de
uma justificação por observâncias ritualistas. Assim, nessa época, era esse o
quadro. Nas igrejas mistas da Ásia Menor e do Ocidente, alguns irmãos iam à
sinagoga no sábado e à reunião da igreja no domingo, guardando os dois dias religiosamente,.
enquanto alguns guardavam só o domingo. Alguns se sentiam obrigados a guardar
todas as festas e jejuns judaicos, enquanto outros não Ihes davam atenção. E
aqueles que não tinham luzes cristãs que Ihes ajudassem a compreender que as
observâncias judaicas não eram nada essenciais, sentiam sua consciência
oprimida ou ofendida pela diversidade. Foi para resolver esse problema que o
Apóstolo escreveu essas passagens. Até aqui estamos de acordo”. [4]
No
entanto, prosseguindo, afirmamos que com a mesquinha lista de “dias”, “meses”,
“tempos“, “anos”, “dias santos”, “luas novas”, “sábados”, o apóstolo quer dizer
as festas judaicas, e apenas essas. A festa dos cristãos, o domingo, não está
em questão aqui, porque sobre a observância deste não havia disputa nem
diversidade alguma nas igrejas cristãs. Judeus cristãos e gentios cristãos
consentiam universalmente na santificação do domingo. Quando assevera que a
consideração ao dia, ou a não-consideração a ele, não é essencial, assim como
comer ou não comer, a interpretação natural e legítima é que ele quer dizer
aqueles dias que estão em questão e não outros. Quando Paulo afirma que 'julga
iguais todos os dias' (Rm 14.5), devemos entender que fazia referência a cada
um daqueles dias que eram objeto de diversidade -não ao domingo dos cristãos,
sobre o qual não havia qualquer discussão.
Duas lições
Tendo
estabelecido, pois, o princípio apresentado por Paulo, podemos extrair duas
lições muito importantes. Primeiro, Paulo afirma claramente que a igreja do
Novo Testamento não deverá observar o sábado do sétimo dia. Grupos como os
Batistas do Sétimo Dia e Adventistas do Sétimo Dia reivindicam que, visto o
Quarto Mandamento estar em vigor permanentemente, a igreja deve continuar a
observar o sábado do sétimo dia.
Esses
grupos mantêm que a igreja primitiva adorava no sétimo dia e só mais tarde, sob
Constantino e o papado subsequente o dia de adoração foi mudado para o primeiro
dia da semana.
“ ...
as pessoas guardam o primeiro dia da semana porque a igreja apóstata dos tempos
primitivos emprestou dos r pagãos o costume e passou-o para o protestantismo.
Os ! pagãos adoravam o sol nesse dia...”
“O domingo sempre foi o dia do culto pagão. Sempre
foi dedicado ao deus do sol Da prática pagã da adoração do sol temos a palavra
“domingo“. [NT] Falando das abominações sendo praticadas no tempo de Ezequiel,
o profeta disse: 'Levou-me para o átrio de dentro da Casa do Senhor; e eis que
estavam à entrada do templo do Senhor; entre o pórtico e o altar; cerca de
vinte e cinco homens, de costas para o templo do Senhor e com o rosto para o
oriente 1. adoravam o sol, virados para o oriente' (Ez 8.16)”. [5]
Muitos
adventistas interpretam o selo sobre os 144 mil de Apocalipse 7 como sendo a
adoração do sétimo dia, e vêem Daniel 7.25 como sendo uma profecia de que o
apóstata mudaria o dia do sétimo ao primeiro dia da semana.
Mesmo
se houvesse evidência de que a igreja primitiva (incluindo os gentios) adorava
no sétimo dia (e não há evidência disso), não se pode escapar das referências à
adoração do primeiro dia (Atos 20.7; 1Co 16.1,2; e Ap 1.10). Nem podemos
escapar da proibição de se guardar o sábado do sétimo dia, de Colossenses 2.16,
17. Para os adventistas, infelizmente, a proibição e prática apostólica não
pesam. Um escritor adventista diz: “Seja enfatizado que, mesmo se fosse
encontrado apoio apostólico para o domingo, ainda o cristão bíblico não o
poderia aceitar. Nem mesmo um apóstolo poderia mudar a lei de Deus”. [6] Uma
abordagem tão soberba ao Novo Testamento se deve principalmente a seu
compromisso com as profecias de Ellen G. White. Na visão deles, essas profecias
têm autoridade divina e têm precedência sobre a prática apostólica. No entanto,
o ensino claro da Bíblia é que o sétimo dia foi revogado.
A
segunda lição é muito importante para toda essa discussão sobre o dia em que a
Igreja deve adorar. Se Paulo revoga o sétimo dia mas não o princípio moral de
um dia em sete, como determinamos qual o dia? Temos duas opções: ou a Bíblia
nos revela qual o dia apropriado, ou a igreja pode escolher o dia. Muitos, em
toda a história da igreja, incluindo Calvino, ensinaram que, como a igreja deve
ter um dia para a adoração, ela pode escolher o dia. A Igreja apropriadamente
escolheu o primeiro dia por causa da ressurreição. Contudo, fica aí entendido
que a igreja está livre para mudar o dia se assim desejar. Lutero ensinou em
seu Catecismo Maior:
“Mas visto que a grande maioria está sobrecarregada
com negócios, precisa haver algum dia da semana para atenção a esses assuntos,
Como o costume inócuo do dia do Senhor conseguiu um consentimento unânime,
somente confusão poderia resultar de uma inovação desnecessária”. [7]
Calvino
expressa estar de acordo:
“Embora o sábado tenha sido revogado, ainda nos
assiste ocasião: (1)para nos reunirmos em dias determinados para o ouvir da
Palavra, o quebrar do pão místico e as orações públicas...”; (2) para dar
descanso do trabalho a servos e operários... Porém, estamos usando-o como um
recurso, um medicamento necessário para se manter ordem na igreja... Também
devemos observar juntos a ordem prescrita pela igreja para o ouvir da Palavra,
a administração dos sacramentos e as orações públicas”. [8]
Quanto
ao dia, Calvino acreditava que a Igreja apostólica escolheu sabiamente o
primeiro dia, porque foi o dia da ressurreição de Cristo, Mas diz: “Nem me
prendo ao número “sete” de modo a obrigar a igreja sujeitar-se a ele, E não
condenarei igrejas que têm outros dias solenes para suas reuniões, contanto que
não haja nenhuma superstição”. [9]
Mas de
acordo com Paulo em Romanos 14 e Gálatas 4, nenhum homem ou igreja tem a
prerrogativa de estabelecer um dia para outros, Portanto, se somos proibidos de
adorar no sétimo dia e não podemos legislar um dia, a única alternativa é que
Deus já legislou um novo dia. Citando Dabney novamente:
“Se fomos bem-sucedidos em provar que o sábado é
uma instituição perpétua, a evidência parecerá perfeita, A lei perpétua do
decálogo mandou que todos os homens, em todos os tempos, guardassem um dia de
sábado, e “até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til
jamais passará da lei, até que tudo se cumpra” (Mt
5,18), O Apóstolo, em Colossenses 2,16, 17, diz-nos claramente que o sétimo dia
não é mais nosso sábado, Que dia é, então? Deve ter sido substituído por algum
dia, e qual deles é mais provável de ser o substituto verdadeiro senão o dia do
Senhor ? A lei não é revogada; não pode ser. Mas Paulo mostrou que ela está
mudada, Para qual dia mudou o sábado, senão para o primeiro: nenhum outro dia
da semana tem sombra de direito. Precisa ser este, ou nenhum; mas não pode ser
nenhum; portanto tem de ser este”. [10]
Como,
então, Deus revelou à Igreja a mudança de dia? Buscaremos a resposta a esta
pergunta no próximo capítulo.
NOTAS:
[NT] —
Gl 4.10-11; "Vocês estão observando dias especiais, meses, tempos definidos
e anos! Temo que os meus esforços por vocês tenham sido em vão" (NIV).
[1] — Joseph A. Pipa, Jr., Root and Branch (Filadélfia:
Great Comission Publications, 1989), cap. 7-10,
[2] — Ver H.C.G. Moule, Colossians and Philemon Studies (Londres:
Pickering & Inglis Ltd) p. 175.
[3] —
Owen, p. 362 (com minha ênfase).
[4] — Dabney, Lectures, pp. 385, 386 (ênfase minha)
[4] — Dabney, Lectures, pp. 385, 386 (ênfase minha)
[NT] —
Em inglês, Sun - day, dia do sol. Em contraste, no português:
Domingo: (do latim, dies dominicu), dia do Senhor, Novo Dicionário
Aurélio).
[5] — Richard Lewis, The Protestant Dilemma (Mountain View,
Cal., 1961) pp. 85, 141, citado em Jewett, 113.
[6] —
Lewis, p. 103, citado em Jewett, 113.
[7] — Martin Luther, The Larger Catechism (Filadélfia:
Fortress Press, 1959), 20.
[8] — John Calvin, lnstitutes of Christian Religion (Filadélfia:
The Westminster Press, 1967) II, viii, 32, 33, 34, [As lnstitutas: João
Calvino]
[9] —
Calvin, II, VIl, 34,
[10] —
Dabney, Lectures, 390, 391.
Fonte: O
presente artigo é o capítulo 7 do livro O Dia do Senhor, de
Joseph Pipa, publicado no Brasil pela Editora Puritanos.
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