A gravura
A gravura “Mary and Eve” (Maria e
Eva) foi feita por Grace Remington, freira da Abadia Mississipi em Iowa – EUA e
é comercializada, como cartão de Natal, no site da Abadia.
O desenho apresenta como moldura
a representação de uma árvore formando um portal. O portal, além de acompanhar
a forma estabelecida pelas silhuetas de Eva e Maria, é muito utilizado em
pinturas católicas relacionadas a santos. O fundo da cena é limpo, preenchido
apenas pela cor dourada. A base do desenho é piso de terra. A árvore, repleta
de frutos, o chão de terra e o fundo dourado parecem apontar para o primeiro
paraíso, o Jardim do Éden.
Mais ao centro da gravura, Eva e
Maria. Eva está olhando para o centro do desenho, a barriga de Maria, onde está
o Redentor. Eva está nua, coberta apenas por seus cabelos que adquirem forma de
vestido. Sua mão direita segura um fruto parecido com maçã, clara referência ao
fruto proibido que ela comeu e passou ao seu marido, Adão. Suas pernas estão
presas pela serpente, referência possível à escravidão do pecado, resultante da
queda. À direita da cena, Maria, vestida de branco e com um véu azul. O branco
aponta para sua pureza e o azul para sua realeza, visto que é considerada
eternamente virgem e chamada Rainha do Céu, no catolicismo romano. Sua mão está
sobre a barriga, onde está seu filho Jesus.
O movimento e as emoções da
gravura se localizam nos olhares e nas mãos das personagens. Eva, cabisbaixa,
com rosto corado de vergonha e olhar triste, segura na mão direita o fruto do
pecado e, com a outra mão, segura a mão de Maria, sobre a barriga onde está o
Redentor. Maria, com olhar de misericórdia em direção a Eva, com a mão direita
acaricia seu rosto e com a esquerda acaricia a própria barriga. Na base do
desenho, Maria pisa a cabeça da serpente. A serpente está com a língua para
fora, indicando sua morte. Os sentimentos expressos na gravura são complementados
pelo poema da freira Grace:
Minha mãe, minha filha, doadora
da vida, Eva,
Não se envergonhe, não se aflija.
As coisas antigas já se passaram,
Nosso Deus trouxe a nós um Novo
Dia.
Veja, eu estou com a Criança,
Por meio de quem tudo será
reconciliado.
Oh Eva! Minha irmã, minha amiga,
Nós nos alegraremos juntas
Para sempre
Vida sem fim.
A
teologia
Via de regra, toda forma de arte
tem uma mensagem e, por vezes, a mensagem revela a cosmovisão e os pressupostos
do autor. A gravura analisada foi feita por uma freira e, conscientemente ou
não, acaba revelando 2 aspectos importantes da teologia católica romana:
1.
Maria esmagando a cabeça da serpente
Logo após a entrada do pecado no
mundo, como parte do castigo à serpente, Deus anunciou: “Porei inimizade entre ti
e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a
cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” (Gn 3.15)
Está claro no texto que aquele
que esmagará a cabeça da serpente será o descendente da mulher. Como a serpente
não estava ali apenas como um animal, mas, principalmente, como instrumento de
Satanás (Ap 12.9), os estudiosos da Bíblia entendem que este versículo é o
primeiro anúncio da vitória de Jesus, o descendente, sobre o diabo. Por isso,
Gênesis 3.15 é chamado de o “Protoevangelho”, primeiro Evangelho.
A Igreja Católica Apostólica
Romana, em um esforço para incluir Maria no plano de salvação, interpreta este
versículo atribuindo à mãe de Jesus a missão de esmagar a cabeça da serpente. Veja
abaixo diversos trechos de documentos católicos sustentando esta interpretação:
“5.
Citai algumas dessas promessas. 1º A que Deus mesmo fez nestas palavras do
Gênesis (III, 15), dirigidas à serpente, que tentara e seduzira a mãe do gênero
humano: ‘Porei inimizade entre ti e a mulher, entre sua raça e a tua, e Ela te
esmagará a cabeça (...) 6. Qual é a mulher anunciada na primeira destas
promessas? Todos os intérpretes da Escritura são unânimes em reconhecer nesta
gloriosa mulher a Sma. e Imaculada Virgem Maria, escolhida de Deus para reparar
a falta de Eva, reconciliar o céu com a terra e ser a libertadora do gênero
humano.” Devoção à SS.ma Virgem Maria, Ensinada à Mocidade, parágrafo 5 e 6.
“Mas a humilde Maria será sempre
vitoriosa na luta contra esse orgulhoso, e tão grande será a vitória final que
Ela chegará ao ponto de esmagar-lhe a cabeça, sede de todo o orgulho. Ela
descobrirá sempre sua malícia de serpente, desvendará suas tramas infernais,
desfará seus conselhos diabólicos, e até o fim dos tempos garantirá seus fiéis
servidores contra as garras de tão cruel inimigo". Tratado da Verdadeira
Devoção à Santíssima Virgem, parágrafo 54.
“10 - Explique a primeira
promessa de Nossa Senhora. A "mulher" anunciada é Maria Imaculada; a
"descendência", ou posteridade da mulher, é Jesus Cristo, seu Unigênito
Filho, e em Jesus Cristo todos os cristãos. A serpente é o demônio, e a raça da
serpente são os que de tal modo cometem o pecado que se identificam com ele: ‘Quem
comete o pecado é do demônio" (I Jo. III, 8). Maria esmaga a cabeça da
serpente, isto é, vence o demônio: primeiro e principalmente por seu Filho
Jesus, vencedor do demônio e do pecado; segundo, pela sua Imaculada Conceição.
Deus estabeleceu, assim, ‘inimizades’ perpétuas e irreconciliáveis entre Maria
e o demônio, entre a posteridade de Maria e a do demônio. Os hereges de todos
os tempos compartilharam dessa inimizade, do lado do demônio, atacando o culto
a Maria, destruindo suas imagens e santuários, perseguindo seus devotos.”
Catecismo de Nossa Senhora, Lição I.
“37 - Esta verdade está, de fato,
contida no Depósito da Revelação? 1) Na Sagrada Escritura: a) ‘Porei inimizades
entre ti e a mulher; entre a tua descendência e a descendência dela (...) ela
te esmagará a cabeça’ (Gen 3, 15). Conforme a doutrina constante da Igreja, a
‘mulher’ de que fala o Gênesis é Maria, Mãe de Jesus, sua ‘descendência’. Nessa
passagem são prenunciadas a comum inimizade e comum vitória total do Redentor e
de sua Mãe Santíssima sobre o demônio. Ora, essas ‘inimizades’ e essa vitória
(‘Ela te esmagará a cabeça’) supõem, não somente em Jesus, mas também em Maria,
uma total ausência de pecado, mesmo original.” Catecismo de Nossa Senhora,
Lição IV.
“52.
Uma única inimizade Deus promoveu e estabeleceu, inimizade irreconciliável, que
não só há de durar, mas aumentar até ao fim: a inimizade entre Maria, sua digna
Mãe, e o demônio; entre os filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e
sequazes de Lúcifer; de modo que Maria é a mais terrível inimiga que Deus armou
contra o demônio. Ele lhe deu até, desde o paraíso, tanto ódio a esse
amaldiçoado inimigo de Deus, tanta clarividência para descobrira malícia desta
velha serpente, tanta força para vencer, esmagar e aniquilar esse ímpio
orgulhoso, que o temor que Maria inspira ao demônio é maior que o que lhe
inspiram todos os anjos e homens e, em certo sentido, o próprio Deus.” Tratado
da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem Maria, São Luis Maria Grignion de
Montfort, parágrafo 52.
“Mas a
humilde Maria será sempre vitoriosa na luta contra esse orgulhoso, e tão grande
será a vitória final que ela chegará ao ponto de esmagar-lhe a cabeça, sede de
todo o orgulho.” Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem Maria, São Luís
Maria Grignion de Montfort, parágrafo 54.
Fruto desta teologia equivocada,
dezenas de imagens foram construídas no decorrer dos séculos com a figura de
Maria esmagando a cabeça de uma serpente. Veja a seguir:
2.
Maria como a nova Eva
A Palavra de Deus ensina em
Romanos 5.12-21 e 1 Coríntios 15.45 que Jesus Cristo é o segundo Adão. A Mariolatria
romanista, sem qualquer evidência bíblica, passou a atribuir a Maria o título
de “Nova Eva”. Veja abaixo alguns trechos de documentos católicos ensinando
isso:
“Como
diz Santo Irineu, ‘obedecendo, se fez causa de salvação tanto para si como para
todo o gênero humano’. Do mesmo modo, não poucos antigos Padres dizem com ele: ‘O
nó da desobediência de Eva foi desfeito pela obediência de Maria; o que a
virgem Eva ligou pela incredulidade a virgem Maria desligou pela fé’.
Comparando Maria com Eva, chamam Maria de ‘mãe dos viventes’ e com frequência
afirmam: ‘Veio a morte por Eva e a vida por Maria”. Catecismo da Igreja
Católica, parágrafo 494.
“QUINTA RAZÃO: Permitis a
uma mulher cooperar na regeneração, como a primeira mulher, Eva, tinha
cooperado na perdição da humanidade. Eva apresentará o fruto da morte, Maria
apresentará o fruto de vida. Eva foi a causa das lágrimas. Maria será, tal um
sorriso do céu, a causa da nossa alegria. Eva cooperou na nossa separação de
Deus; Maria será o traço de união que nos liga a Ele. Maria é a segunda Eva,
mas de ofício radicalmente oposto.” Maria e a Eucaristia, P. Júlio Maria, p.
128.
“Era
conveniente à divina Sabedoria restituir ao mundo, por uma Virgem: Maria, o que
outra Virgem: Eva, lhe havia tirado. Eva, a primeira Virgem e a mãe dos
viventes, segundo a natureza, havia perdido para ela e para todos os
descendentes o direito de comer da árvore da vida. Deus quis, depois da
primeira Eva pecadora, a Eva inocente e pura: Maria, para restituir aos homens,
na ordem da graça, o direito de comer da verdadeira árvore da vida, que é Jesus
Cristo.” Maria e a Eucaristia, P. Júlio
Maria, p. 244.
“O
novo Adão e a nova Eva, que são o Cristo e a Virgem dolorosa, vinham reparar o
mal causado pelos primeiros.” Maria e a Eucaristia, P. Júlio Maria, p. 424.
“Pela
obediência ela tornou-se causa de salvação, para si mesma e para todo o gênero
humano. O laço da desobediência de Eva foi desfeito pela obediência de Maria. O
que Eva atou com sua incredulidade, a Virgem Maria desatou pela fé.” S. Irineu,
apud Antônio Mesquita Galvão, O Silêncio de Maria, p. 2.
“O que
Eva condenou e perdeu pela desobediência, salvou-o Maria pela obediência. Eva,
obedecendo à serpente, perdeu consigo todos os seus filhos e os entregou ao
poder infernal; Maria, por sua perfeita fidelidade a Deus, salvou consigo todos
os seus filhos e servos e os consagrou a Deus.” Tratado da Verdadeira Devoção à
Santíssima Virgem Maria, São Luis Maria Grignion de Montfort, parágrafo 53.
“De
resto, numerosos Padres e Doutores da Igreja vêem na mulher anunciada no
“proto-evangelho” a mãe de Cristo, Maria, como “nova Eva”. Catecismo da Igreja
Católica, parágrafo 411.
“Ao
final deste missão do Espírito, Maria torna-se a ‘Mulher”, nova Eva, ‘mãe dos
viventes’, Mãe do ‘Cristo total”. Catecismo da Igreja Católica, parágrafo 726.
“E é
na hora da nova Aliança, ao pé da Cruz, que Maria é ouvida como a Mulher, a
nova Eva, a verdadeira ‘mãe dos vivos” Catecismo da Igreja Católica, parágrafo
2618.
Sendo
assim, uma gravura com Eva e Maria representadas não é algo novo na história.
Veja abaixo 3 exemplos:
Conclusão
A
gravura da freira Grace Remington “Mary and Eve” possui beleza artística e gera sentimentos de graça e
misericórdia. Todavia, é impossível não considerar a teologia mariólatra por detrás
do desenho, de exaltação a Maria como “Nova Eva”, aquela que reparou os erros
da primeira, e de “Rainha dos céus”, aquela que esmagou a cabeça da serpente. Como
escreveu Paul Romane Musculus, “A respeito da arte, bem como, a
respeito de toda questão submissa à Igreja, a reflexão teológica é necessária.
Para um reformado, a sua única referência, sobre qualquer assunto, será sempre
a Palavra de Deus.” (La Prière des Mains: L'Eglise Reformee et L'Art, p.191).
10 comments:
Meu nobre Rev Ageu
O seu texto apresenta uma fina apreciação crítica. Revela conhecimento histórico e teólogico, bem como do contexto da autora e detalhes omitidos na gravura [como o poema]. As ilustrações somam como um alerta aos incautos e afirma uma advertência para o risco de se encantar pela beleza do cantos das sereias sem atentar para o real perigo.
Parabéns, e Deus continue usando-o com conhecimento, discernimento e coerência.
Reverendo Ageu, apreciei muito o seu texto. Bastante lúcido, teológico e pedagógico. Deus o abençoe ricamente e que tenha um 2016 repleto de bênçãos na família. De seu irmão e conservo, Afonso.
Belo texto Ageu. Deus continue a te (e aos teus) dar graça neste ano novo.
ab
Fôlton
Excelente, excelente.
Louvo a Deus, nao apenas porque este artigo de comprovada lucidez e excelencia trouxe `a luz as fraquezas da gravura em questao, mas sobretudo porque ele nos encoraja a submeter as artes ao crivo da Palavra de Deus. A teologia reformada representa uma cosmovisao que funciona como lentes de interpretacao do mundo ao nosso redor.
Ageu, andei pensando sobre o assunto e fiquei assustado que algum protestante pense em comparar Eva e Maria.
A Bíblia fala de Jesus como o segundo Adão, mas Maria *não pode ser a segunda Eva*, pois é a mãe de nosso Senhor! Se quizerem um símbolo a segunda Eva é a Igreja. A Igreja é a noiva do Cordeiro.
Ab
Fôlton
Como católico sou abrigado a dizer que esta é uma das mais belas apresentações Mariológica que já vi.
Um belo Estudo sobre a Santíssima Virgem.
Salve Maria.
Excelente texto. Na verdade, no catolicismo, Maria tem mais representatividade que o próprio Deus. Eles alegam que não adoram, mas veneram Maria...isso não passa de um simples jogo de palavras para não afirmarem que são adoradores exclusivos de Maria.
Excelente texto! Também fiquei muito impressionada com um livro chamado "As Glórias de Maria" onde o escritor, um certo Santo Afonso Maria de Ligório, onde Maria é considerada onipotente não uma vez, mas algumas vezes. Fico muito triste quando alguns católicos nos acusam de odiar Maria. Eu a amo como amo meus irmãos de todas as épocas. Acho que a amo até mais um pouco por ter ela sido mãe de Jesus, mas jamais poderia atribuir a ela o que lhe é atribuído erroneamente, muito menos atributos incomunicáveis de Deus.
Excelente texto. Sou um desses protestantes que tinham se encantado com a beleza e doçura dessa arte. Não havia me atentado ao background idólatra à Maria.
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