Seja Justo com os Liberais
Como a visão de mundo afeta a comunhão
Por David Mills*
Depois de alguns anos de
combate eclesiástico (na trincheira Episcopal), eu acho que sei por que muitos
cristãos conservadores não respondem ao liberalismo com tanta força quanto era
de se esperar. Eles acham que os liberais estão apenas fazendo de conta. Que
eles sabem das regras mas que, como crianças mimadas e voluntariosas decidiram
jogar com as regras que melhor conhecem. Por estarem apenas fingido tudo de que
precisam e ser exprobrados por seu comportamento, e se isso não funcionar, os
conservadores podem tentar modificar as regras e as estruturas das suas igrejas
para impedir que os liberais continuem a violar às regras.
Um amigo evangélico
disse-me recentemente o que desejaria dizer ao bispo John Spong e seus aliados:
“OK, tudo bem. Creia no que quiser, mas não se chame de cristão. Você não pode
ser membro do clube sem ter que pagar algumas obrigações, e a obrigação básica
é crer. Entre logo, ou caia fora, mas deixe de enlamear a água”. Registra-se
que Fabian Bruskewitz, o bispo de Lincoln, em Nebraska, disse que a “diferença
entre um católico dissidente e um protestante, é que o protestante possui
integridade”.
Na verdade isso não seria
justo para com a maioria dos liberais. Admito que seja irritante quando alguém
que tem vivido da igreja numa boa declara a sua rejeição por mais uma das suas
doutrinas, e louva a si mesmo por sua coragem profética diante do aplauso de
repórteres irreligiosos e de editores que espalham aos seus pés contratos para
a edição de livros. Ainda mais repugnante é quando teólogos bem de vida e
paus-d’água escarnecem do Papa por sua suposta compreensão simplista dos
problemas da sociedade moderna ou quando (como tem ocorrido na Igreja
Episcopal) feministas vitalícias vêm a público tachar como “maligno” um bispo
que em bases bíblicas hesita ordenar mulheres.
Nada obstante, temos que
ser justos com os liberais e tentar ver as coisas do seu ponto de vista, não
apenas como uma cortesia devida a qualquer oponente, mas para saber o que fazer
com eles. A maioria dos liberais não está brincado. Eles estão jogando dentro
das regras e jogando honestamente. Eles estão agindo com integridade. Isso é o
problema.
O que crêem os liberais
Deixe-me explicar. Os liberais
(a denominação usual, mas com certeza insatisfatória, para a obscuro coletânea
de céticos, relativistas, ideólogos e sentimentalistas ajuntados principalmente
por se oporem às mesmas coisas) crêem que a verdade evolui, cresce e muda, ou
que, pelo menos, a nossa compreensão da verdade evolui de modo tão radical que
as certezas anteriores podem ser substituídas por novas e contraditórias
verdades. Crêem que o que tem sido, mesmo o consolidado, pode não ser mais, ou
que não se sustentará por muito tempo.
A maneira de explicarem
essa evolução difere. Alguns crêem que estão resgatando as verdades da tradição
cristã (a igualdade entre homens e mulheres, por exemplo) dos seus erros (a
primazia dos homens). Alguns acreditam que estão resgatando as verdades existentes
na tradição cristã dos erros que lhe foram impostos (aplica-se o mesmo
exemplo). Outros crêem que a Bíblia e a tradição foram tentativas
historicamente limitadas de falar das realidades religiosas fundamentais e
desejam expressar essas realidades fundamentais de uma forma mais moderna e
relevante. Outros crêem que não existe nenhuma verdade na ou sob a tradição
cristã e que temos, portanto, de reinventar a Igreja na medida em que
cooperamos com ou a serviço dos ideais e desejos que temos, quaisquer que sejam
eles.
Há ainda os que acreditam
ter recuperado a própria fé original, a religião do Jesus amoroso, inclusivo,
que não julgava ninguém e aceitava todo mundo (com a exceção dos
protocapitalistas e dos religiosos tradicionalistas da época), cuja mensagem de
tolerância foi distorcida pelo farisaico Paulo e cuja história foi reescrita
por líderes eclesiásticos misóginos, racistas e homofóbicos posteriores, de
sorte que pudessem continuar a oprimir a mulheres, negros e homossexuais.
Não importa como expliquem
a evolução, os liberais têm sempre que chegar à conclusão de que a tradição
cristão tem pouca autoridade formativa e nenhuma autoridade para ser obedecida,
e que as novas verdades que vislumbram têm de substituir aquelas ainda
asseveradas pelos cristãos ortodoxos. A ortodoxia, na melhor das hipóteses,
está fora de moda — mas é perigosa e não tão divertida. Não é pitoresca: é uma
inimiga do bem, de Deus e da liberdade e liberação humanas.
Se estiverem certos,
aqueles que não podem ou não querem explorar áreas anteriormente proibidas nem
arriscar a perda de todas as certezas, que não se abrem aos novos movimentos do
Espírito Santo, que querem se apegar ao sentido pleno de textos antigos, e que
se estribam na tradição da igreja para que lhes diga o que disser, não têm o
direito de definir a doutrina e a disciplina da igreja. Não se pode permitir
aos que laboram em erro que limitem a crença aceitável àquilo que em dias menos
complicados era chamado de “ortodoxia”. Certamente não se pode lhes permitir que
expulsem os liberais nem mesmo que os restrinja ou iniba.
Conservadores confusos
Os conservadores cristão às
vezes ficam confusos porque todos os cinco tipos de liberais tendem a manter as
formas tradicionais (verbais e estruturais) da religião. Os liberais estão
sendo perfeitamente razoáveis ao utilizá-las no mesmo instante em que rejeitam
o conteúdo que anteriormente possuíam.
O povo gosta de liturgia e
sente a necessidade de elevar orações a algo que esteja acima de si; uma
hierarquia é um bom modo de se administrar uma igreja, especialmente se você
chegou no topo; aquelas velhas doutrinas são metáforas úteis; as histórias
bíblicas dão boas ilustrações; doutrina e história fazem parte da herança e
portanto confortam os anciãos; os edifícios são belos, e é financeiramente
compensador. Tal deferência para com a tradição, claro, é algumas vezes
conveniente. Por exemplo, quando bispos que não dão a mínima para o que os pais
da igreja disseram sobre a ordenação ou a moralidade defendem o intrometimento
na vida de seus paroquianos ao apelarem para o conhecimento patrístico do bispo
(ou àquilo que pensam ser o conhecimento patrístico).
Os liberais atuam
geralmente a partir de um tipo de conservadorismo. Ao perceberem que a tradição
é portadora da nossa memória comum e que assegura a nossa identidade como
comunidade, eles acham que os cristãos modernos podem manter a liturgia
patrística e a ordem hierárquica e até mesmo as afirmações doutrinais do Credo
Niceno, ao mesmo tempo em que crêem que Jesus é apenas um caminho para o deus
percebido vaga e incompletamente por todas as religiões, inclusive a nossa, ou
enquanto ignoram o ensinamento moral específico da Bíblia em favor de um
mandado generalizado para amar, ou rejeitam o ensinamento paulino da primazia
pela leitura equivocada de Gálatas 3:23.
O liberal seria tolo se
abrisse mão das grandes vantagens de ser membro de uma antiga, rica e
respeitada denominação só porque ele sabe mais que os outros membros da sua
igreja os quais, segundo a sua natureza, são normalmente complacentes,
ignorantes ou reacionários. Afinal de contas a igreja é deles tanto quanto
dele.
Para os cristãos liberais,
a sua igreja é a instituição terrena que leva adiante esse processo de
descoberta, evolução e crescimento, e que, portanto, devem permanecer nela com
uma clara consciência. Do seu ponto de vista não precisam deixar a igreja só
porque “seguem na frente” de uma compreensão mitológica da realidade codificada
no seu passado, conhecida agora, como inadequada ou equivocada, por uma vanguarda
iluminada de seus membros (eles mesmos). Na verdade, se estiverem certos, devem
permanecer na igreja para usarem o seu status, riqueza e autoridade para
trazerem mais membros à iluminação. Ao ajudarem a igreja a ver novas verdades
crêem que estão ajudando-na a limpar as águas, não a enlameá-las. Ao aceitarem
novas verdades, mesmo ao custo da perda de velhas certezas, eles estão agindo
com integridade.
Isso agora faz sentido. É
lógico e se encaixa nos fatos. Pode-se crer nisso. Aceite a premissa de que a
verdade evolui e cresce e você poderá inovar e rejeitar o tanto que quiser sem
a necessidade de modificar as suas lealdades institucionais. Você pode ser um
Episcopal, Presbiteriano ou Católico-romano leal mesmo rejeitando parcial ou
totalmente aquilo que os seus predecessores sustentaram, pois você tem um
melhor conhecimento que o deles, ou vive em uma era diferente da que eles
viveram. Os liberais estão sendo perfeitamente lógicos e agindo com completa
integridade ao recusarem deixar as suas igrejas somente porque não aceitam
alguns ou todos os seus ensinamentos tradicionais.
O problema
O liberalismo cético tem,
portanto, uma integridade toda sua. Os liberais não estão fazendo de conta,
estão pelejando por uma visão de mundo alternativa com as armas que têm à mão.
É uma posição embasada num princípio. O problema — que muitos conservadores não
vêem ou não querem ver — é que esse liberalismo de princípio existe dentro das
mesmas igrejas onde igualmente existe uma ortodoxia de princípio diferente, e
as igrejas não são meras coleções de pessoas diferentes, mas a comunhão de
certas regras, deveres e objetivos comuns que não permitem diferenças tais e
tão profundas entre regras, deveres e objetivos.
Uma igreja não é um clube
no qual um barão ladravaz e um comunista podem conversar genialmente sobre
baseball ou sobre o clima, tampouco um grande prado onde ovelhas e bodes pastam
juntos sem perturbar um ao outro. Na figura liberal da igreja, que tantos
conservadores têm aceito, a comunidade é mais essencial do que a doutrina. A
igreja se parece mais com um time que precisa vestir o mesmo uniforme,
participar dos mesmos jogos e encestar na mesma cesta. Pode ser um time muito
ruim, cujos jogadores quase sempre se esquecem das jogadas e detestam passar a
bola, mas ela tem que ser um time.
Isso está expresso na
imagem que o Novo Testamento faz da igreja como o Corpo de Cristo. Uma igreja é
um corpo, não um monte de braços, pernas, tórax e cabeças espalhados pela sala.
É um corpo projetado para se mover, e movimento exige que haja unidade e
coordenação das partes. Tem de haver uma Cabeça a quem todos os membros
obedecem em coordenação uns com os outros. A crença de que a igreja é uma
coleção de pessoas que obedecem apenas a si mesmas assume que cada joelho pode
fazer o que quiser, e o pé pode fazer o que quiser, e o corpo ainda assim
caminha.
O sentido para os cristãos
ortodoxos
A integridade do
liberalismo significa que ao passo que os cristãos ortodoxos devem respeitar
alguns liberais mais do que respeitavam antes, devem também apartar-se deles
muito mais profundamente. Ou, mais exatamente, devem reconhecer a divisão que
as suas diferenças de princípio criam. Eclesiásticos liberais não estão
fingindo para poderem ser constrangidos em público e ignorados até que se
arrependam, assim como crianças de maus modos. Antes, são soldados de um
exército antagônico com ordens de tomar o terreno que nos foi dado junto com a
ordem para que o defendamos.
É por isso que os cristãos
ortodoxos têm de compreender a natureza da comunhão e saber aquilo que eles
estão dizendo e fazendo ao permanecerem em comunhão com os que são tão
fundamentalmente contrários à revelação cristã. Falando claro: como podem se
assentar à mesa do Senhor com os que não crêem no Senhor, ou que dizem crer
nEle mas que não crêem naquilo que Ele ou Seus porta-vozes autorizados dizem?
Quebrar a comunhão é simplesmente conceder aos cristãos liberais a grande
gentileza de os levar a sério e de acreditar que o que intentam é mesmo aquilo
que afirmam. (É uma gentileza que alguns deles, é claro, podem não desejar).
Os
liberais não estão confusos, não são ignorantes, não estão enganados nem fazem
de conta: estão comprometidos com o entendimento coerente e completo daquilo
que significa ser um cristão. Tal fé não é ortodoxa. O problema não é que os
liberais tiram conclusões equivocadas dos postulados e princípios que partilham
com os que se mantêm fiéis à tradição cristã; o problema é que mantêm
postulados e princípios diferentes e incompatíveis e agem e falam de acordo com
isso.
Em sendo assim, os cristãos
ortodoxos não podem simplesmente declarar que os liberais devem somente ser
honestos sobre o seu ceticismo e deixar a igreja, e então (quando não a deixam)
continuam a levar as suas vidas jungidas perversamente à deles na intimidade da
comunhão. A única coisa a fazer com os liberais é respeitá-los por suas
convicções, e, por essas mesmas convicções, excomungá-los.
* Diretor de publicação da Trinity Episcopal School for
Ministry e editor da revista
acadêmica Mission &
Ministry do seminário. Editou uma coletânea de ensaios dobre C. S. Lewis, The Pilgrim’s Guide: C. S. Lewis
and the Art of Witness (Eerdmasn,
1998) e está trabalhando num volume da série titulado Woth Doing Badly: G. K. Chesterton
and the Art of Witness. É também o editor chefe da Touchstone e o correspondente americano da
revista inglesa New Directions.
“Seja justo com os liberais” (Be Fair to the Liberals) apareceu na edição de
dezembro de 1988 da revista Chronicles:
A Magazine of American Culture. Artigo traduzido por Marcos Vasconcelos.