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September 24, 2020

Resenha de Genesis Unbound, de John Sailhammer, por Ageu Magalhães



SAILHAMER, John H. Genesis Unbound: A Provocative New Look at the Creation Account. 2. ed. Colorado: Dawson Media, 2011. Tradução, não publicada, de Rafael Fcachenco Filho.

John Sailhamer é um erudito na área do Antigo Testamento, professor no Seminário Teológico Batista Golden Gate, na Califórnia, EUA, autor de 15 livros e dezenas de artigos. Seu livro mais recente é “O Significado do Pentateuco: Revelação, Composição e Interpretação” publicado pela Downers Grove, em 2009. (1) Ele obteve o seu PhD em Línguas Semíticas na UCLA, Universidade da Califórnia em Los Angeles, EUA.

Genesis Unbound teve a sua primeira edição em 1996, publicada pela Dawson Media. A segunda edição (que tenho em mãos) é de 28 de Março de 2011, produzida pela mesma editora, sem acréscimos. O formato do livro é de 22,5 x 15 cm, em uma edição muito bem diagramada. Os capítulos são curtos e, embora o tema seja difícil, a linguagem é simples e didática, resultado evidente de um autor que leciona a mais de 40 anos.

Genesis Unbound conta com 23 capítulos e dois apêndices. Os capítulos estão distribuídos em 4 partes. Na parte 1, o autor aborda a importância do tema proposto. Na parte 2, ele expõe seus principais argumentos, chamando esta divisão de “o coração do livro”. Na parte 3, ele apresenta uma breve exposição de Gênesis 1.1—2.4 e conclui os argumentos da parte 2. A parte 4 é para aprofundamento das questões históricas e filosóficas que envolvem o tema.

No primeiro capítulo, “Qual a Questão?”, o autor fala sobre a dificuldade de interpretação dos dois primeiros capítulos de Gênesis e demonstra que a perspectiva que defende que o primeiro versículo de Gênesis 1 é um título para o resto do capítulo está equivocada, pois, se for meramente um título, a criação não tem início no versículo 1, mas apenas no versículo 2. O autor defende que a interpretação de Gênesis 1 e 2 sempre foi influenciada por elementos externos ao texto. Aliás, esta é a origem do nome que o autor deu ao seu livro “Gênesis Desatrelato” ou sem amarras, referindo-se às amarras pressuposicionais que, em sua opinião, têm impedido uma interpretação mais bíblica destes capítulos iniciais de Gênesis.

No segundo capítulo, “Que diferença ela faz?”, o autor situa sua forma de interpretação de Gênesis em um período anterior ao “despertar da ciência moderna no final do século XVIII e início do século XIX” (p. 31) e denomina a sua perspectiva de “Criacionismo Histórico” distinguindo-se, portanto, das outras visões sobre a criação denominadas de “Criacionismo”, “Criacionismo Progressivo” e “Evolucionismo Teísta”. O autor sustenta que uma visão da real perspectiva do autor de Gênesis ao escrever os primeiros capítulos destruirá boa parte do conflito entre ciência e fé que perdura até os dias de hoje.

Ainda no segundo capítulo, o autor alista seis questões-chave. Na primeira ele sustenta que a palavra “princípio” de Gênesis 1.1 (reshith, no hebraico) não traz em si a ideia de limitação de tempo, podendo, portanto, apontar para bilhões de anos. Para ele, Gênesis 1 trata de dois períodos distintos: o primeiro, no versículo 1, quando Deus criou todas as coisas em um período indeterminado de tempo; e o segundo, de Gênesis 1.2-2.4a, quando Deus preparou o Jardim do Éden para morada do ser humano, em uma semana. A segunda questão-chave propõe que a interpretação do versículo 1 como um período indeterminado de tempo se harmoniza perfeitamente com os relatos científicos sobre eras geológicas, glaciais, biológicas e antigas mudanças climáticas em nosso planeta. Na terceira questão-chave, Sailhamer afirma que Deus criou a terra em Gênesis 1.1 e no restante do capítulo ele a preparou para habitação. Esta terra é a terra prometida a Israel em Gênesis 15.18. A quarta questão-chave tenta responder por que há menção da criação do sol, da lua e das estrelas no quarto dia e das plantas e animais no terceiro e quinto dias. Sobre os primeiros, o autor diz que o “senso geral de Gênesis 1 assume que no quarto dia, o sol, a lua e as estrelas já estavam em seu lugar” (p. 35) e sobre as plantas ele argumenta que apenas árvores frutíferas foram criadas ali, estando todas as outras árvores já criadas no primeiro período, descrito no versículo 1. Na quinta questão-chave o autor defende que os seres humanos foram criados no sexto dia mesmo e que esta posição se adequa perfeitamente às teorias científicas modernas que demonstram o aparecimento do ser humano no mundo a não mais que 30 mil anos. Na sexta e última questão-chave, o autor trata sobre os dinossauros. Em sua visão, eles certamente foram criados e extintos no período indeterminado de tempo do versículo 1 de Gênesis 1. Neste, Deus esteve atuando no mundo “criando novas espécies de animais e permitindo que outras se extinguissem” (p. 38).

No terceiro capítulo, o autor sustenta a importância da expressão “No princípio” e o quanto ela tem sido incorretamente interpretada. Ele demonstra que a expressão é constantemente utilizada nas Escrituras como um período antecedente ao de uma contagem de tempo. Ele utiliza exemplos da vida de reis de Israel em que, antes da contagem dos anos do reinado, um primeiro período era denominado de “princípio”, para só depois iniciar-se a contagem dos anos.

No quarto capítulo, Sailhamer defende que o termo hebraico “êretz” comumente traduzido por “Terra” (planeta) deveria ser entendido como “terra” simplesmente, uma porção específica e delimitada de terra. Ele sustenta que é com este sentido que a palavra aparece na maioria dos textos de Gênesis. A terra que Deus preparou no primeiro capítulo, na verdade, foi a terra prometida aos judeus. Nas palavras do próprio autor, um “leitor familiarizado com o tema e propósito do Pentateuco naturalmente veria a terra em Gênesis 1 como a terra prometida. Infelizmente, ao usarem palavras que se referem a todo o planeta terra quando traduzem êretz em Gênesis1:1-2, nossas versões obscureceram a conexão desses primeiros versos de Gênesis com o tema central da terra prometida no Pentateuco.” (p. 58). Quanto à palavra hebraica “shamayim” (céus) Sailhamer sustenta que sua tradução natural ao texto em Gênesis 1, a partir do versículo 2, deveria ser sempre com o sentido de céus onde os pássaros voam e nunca no sentido de habitação de Deus. Exceção se faz ao versículo primeiro, em que a junção de terra a céus (céus e terra) formam um merisma, com significado de universo, visto que na língua hebraica não há a palavra “universo”.

No quinto capítulo, o autor analisa a expressão do versículo 2 “tohu vavohu”, geralmente traduzida por “sem forma e vazia”, e conclui que esta tradução foi influenciada, desde a Septuaginta, pela cosmologia grega. Seguiram o mesmo equívoco, Tyndale, a Bíblia de Genebra, a Bíblia King James e a mais atual NVI. Para Sailhamer, a melhor tradução para “tohu vavohu” seria “inabitável e deserta”.

No capítulo 6, o autor defende que o Jardim do Éden prefigurava o Tabernáculo e que sua localização geográfica era a mesma da terra prometida. Analisando a expressão de Gênesis 2.15, em que Deus colocou o homem no jardim do Éden para “o cultivar e o guardar” o autor levanta uma dificuldade sobre as traduções tradicionais, argumentando que a melhor tradução deste trecho seria “para adorar e obedecer”.

No capítulo 7, falando sobre contexto, o autor vai defender que os capítulos 1 e 2 de Gênesis têm sido tratados isoladamente, como se nada tivessem a ver com o livro de Gênesis e com o Pentateuco. Ele argumenta que o entendimento destes dois capítulos deve estar atrelado ao contexto do livro, pois são uma introdução ao Pentateuco. Para o autor, o tema que dá a ligação entre Gênesis 1 e o restante do Gênesis é o da “terra”. Em suas próprias palavras: “Desde o início do relato da criação, o interesse divino na ‘terra’ ocupa nele a posição de maior destaque. Estabelecida a questão maior de que Deus criou o universo (Gênesis 1:1), o escritor de imediato passa a dar um relato do preparo divino da ‘terra’ (1:2). Tanto isso é assim que o restante do relato da criação (1:2-2:4a) é dedicado ao registro da narrativa da preparação divina da ‘terra’.” (p. 92)

No capítulo 8, o autor fala sobre as diferentes explicações sobre as aparentes contradições entre o capítulo 1 e o capítulo 2 de Gênesis e continua seu argumento, do capítulo anterior, de que o tema dominante de Gênesis é o da “terra”. A preparação desta terra, que é a terra prometida, durou apenas uma semana, com dias de 24 horas. É importante observar que o autor usa a palavra “preparação” e não “criação”, pois, em sua visão, a semana a partir do verso 2 não foi de criação do mundo, pois este foi criado no primeiro versículo. A semana foi de preparação para um mundo habitável.

Sailhamer inicia o capítulo 9 com uma tradução interpretativa de Gênesis 1.1—2.4a que sintetiza o que ele ensinou até agora. Para elucidação, transcrevo apenas os dois primeiros versículos de sua tradução interpretativa: “Há muito tempo Deus criou o mundo. Ele criou o sol, a lua e as estrelas, assim como todas as criaturas que habitavam a terra. Ele criou todos eles a partir do nada, não em um único instante de tempo, mas ao longo de um vasto período de tempo. O mundo de Deus, no entanto, não estava completo. Ele ainda não havia criado os seres humanos e a terra onde pretendia colocá-los ainda não estava adequada a eles. Ela estava coberta por um oceano profundo e o sol não podia penetrar a densa neblina que cobria as águas. O Espírito de Deus, entretanto, já estava presente sobre as águas que cobriam a terra.” (p. 107).

Neste capítulo, o autor apresenta três objeções à tese de que Gênesis 1.1 é apenas um título do capítulo, a saber: 1) A forma do versículo 1 não tem semelhança com os títulos de Gênesis (5.1; 2.4); 2) A conjunção “e” do versículo 2 não tem sentido se o versículo 1 é um título; e 3) Gênesis 1 já tem um sumário (2.1) o que torna estranha a existência de outro sumário no início do capítulo. Portanto, para Sailhamer, Gênesis 1.1 não se trata de um título, mas de uma descrição de como Deus fez o mundo no início, revelando-se como o autor.

A partir do 10º capítulo o autor vai tratar, em detalhes, dos seis dias da criação. Ele vai tratar um dia por capítulo. Falando do primeiro dia, Sailhamer segue seu raciocínio de que, nestes seis dias, Deus preparou a terra para o casal primeiro, Adão e Eva, e que esta terra foi a mesma prometida ao seu povo. Falando da expressão “haja luz”, o autor defende que o sol já estava criado e que a luz também. A ordem para que houvesse luz nada mais foi que o comando de Deus para que a luz do sol rompesse “através da escuridão na manhã do primeiro dia da semana. Trata-se meramente da descrição do nascer do sol no primeiro dia da semana.” (p. 121) Argumenta o autor que, da mesma forma como houve inúmeros aparecimentos de arco-íris antes do dilúvio, inúmeros pores de sol aconteceram antes deste em particular. Tratando do firmamento, obra do segundo dia, o autor descarta a hipótese do criacionismo científico de que as águas de cima do firmamento foram uma vasta camada de vapor d’água (ou gelo) translúcido à luz dos astros, e que produzia um efeito estufa sobre a terra (p. 125). Para Sailhamer, o firmamento é apenas o céu que está sobre a terra e as águas acima do firmamento, apenas nuvens de água. No terceiro dia, o autor mostra que Deus ajuntou as águas em um só lugar, isto é, nos mares. Para o autor, não devemos pensar em oceanos porque, para o povo judeu, qualquer ajuntamento de águas é chamado de mar. Ainda neste dia, as árvores frutíferas aparecem. O autor defende que, neste dia, apenas árvores frutíferas foram criadas, confirmando a tese de que todo o restante de vegetais foi criado no princípio. Desconsidera que neste dia Deus criou também relva e ervas que deem semente (1.11). No quarto dia, Deus não criou o sol e a lua, mas apenas os colocou no lugar. No quinto dia também não há criação. Deus direciona os pequenos e os grandes animais marinhos, juntamente com as aves que já foram criados, todos, no princípio, para habitarem as águas e os céus da nova terra, a terra prometida. Diante do eloquente “bará” do verso 21, o autor sugere que ele esteja ali não significando a criação dos grandes animais marinhos, mas como um marcador de novo estágio da criação, isto é, o universo (1.1), os seres vivos (1.20,21) e a humanidade (1.26,27) (p. 146). Na explicação sobre o sexto dia, o autor enfatiza a criação dos seres vivos de modo diferente à criação da vegetação. Em 1.11,12 Deus ordena à terra que produza vegetação e é a terra quem a produz. Aqui no sexto dia, Deus diz à terra para produzir seres viventes, todavia, é o próprio Deus quem os produz (v. 25). Ademais, o autor mostra a diferença entre a criação do primeiro homem e primeira mulher, criados à imagem e semelhança de Deus, em relação aos outros seres, criados segundo a sua espécie, e alista 4 posições sobre a expressão plural “façamos”, de Gênesis 1.26. O autor encerra a descrição dos 7 dias falando do último como o dia de descanso, no qual Deus não trabalhou, mas abençoou o dia. Reafirma a tese de que com “exceção dos seres humanos no sexto dia, Deus não ‘criou’ a terra ou qualquer coisa na terra durante essa semana. Ele ‘pôs em ordem’ a terra, tornando-a um lugar onde o homem e a mulher pudessem habitar. Na noite em que Ele começou Seu trabalho, a terra era inabitável. Todavia, quando Ele começou a falar, a terra assumiu aquelas características que a tornariam um “bom” lugar para os seres humanos criados por Deus.” (p. 158).

A parte 4 do livro aprofunda as questões históricas e filosóficas que envolvem o tema. Logo no início da argumentação, capítulo 18, o autor estabelece que as interpretações mais antigas de um texto bíblico não necessariamente são mais fracas, quando comparadas com interpretações recentes e que uma visão das interpretações antigas pode nos ajudar a ler melhor o texto.

No capítulo 19, Sailhamer define cosmologia e defende que “a história da interpretação de Gênesis 1 e 2 é frequentemente pouco mais que a história do relacionamento entre a perspectiva bíblica da criação e a perspectiva cosmológica em desenvolvimento do mundo ocidental.” (p. 178). Ele apresenta ao leitor as 3 cosmologias básicas, a saber, a Ptolomaica, a Copernicana e a Visão Moderna de mundo destacando o quanto a religião foi se adaptando às novas cosmologias.

No capítulo 20, o autor apresenta um panorama histórico interpretativo de Gênesis 1 e 2. No capítulo 21, o autor sustenta que a tradução de “tohu vavohu” foi afetada pela cosmologia grega, primeiro, via tradução da Septuaginta, depois pela Vulgata, perpetuando-se nas demais traduções do período da Reforma, como na King James, por exemplo. O autor apresenta dois acadêmicos judeus (Rashi e Ibn Ezra) que não foram influenciados pela cosmologia grega e, portanto, não traduziram o “tohu vavohu” por “sem forma e vazia”.

No capítulo 22 o autor expõe os 5 pressupostos básicos que, segundo sua maneira de ver, estão presentes na tradução de nossas versões bíblicas. O primeiro pressuposto equivocado é o de que havia uma massa informe, chamada de caos, esperando para ser moldada a fim de formar a terra e as estrelas. O segundo pressuposto equivocado é o de que a luz criada no primeiro dia era diferente da criada no quarto dia, com os luzeiros. O terceiro pressuposto equivocado é o de que sol, lua e estrelas foram criados apenas no quarto dia. O quarto pressuposto é o de que os seis dias da criação são dias de vinte e quatro horas. O quinto e último pressuposto incorreto é o de que o escopo da obra divina no período de seis dias é a terra e todo o universo.

No capítulo 23, Sailhamer ataca a perspectiva clássica com seus argumentos. Primeiro ele mostra que “terra” de Gênesis 1 é uma referência à terra habitada e não ao planeta inteiro. Utilizando a posição judaica ele assevera que os judeus “entenderam o termo hebraico para ‘terra’ como uma referência à terra prometida aos descendentes da Abraão. Era perfeitamente natural para esses acadêmicos bíblicos ler o texto hebraico desse modo.” (p. 224). Em segundo lugar, ele apresenta a discussão sobre a localização do Éden mostrando a posição de Lutero, de que é impossível localizar o Jardim por causa das mudanças geográficas produzidas pelo Dilúvio, e a posição de João Calvino que, a partir de elementos do próprio texto, tenta localizar o Éden na região da Mesopotâmia. Sailhamer apresenta a sua tese de que o Jardim do Éden localizava-se justamente na terra prometida.

No epílogo, o autor recorda sua tese principal: O mundo foi feito em um período indefinido de tempo, que pode ter sido de bilhões de anos e, na sequência, a terra prometida foi organizada em seis dias de vinte e quatro horas. Ele vê o relato da criação como o relato do que aconteceu com o povo de Deus. Nas palavras dele, o autor de Gênesis 1 “deseja que seus leitores vejam que a mesma terra prometida a Abraão (Gênesis 15) e então dada a Israel (Êxodo 19) já tinha sido preparada para Adão e Eva no início do registro histórico. Eles poderiam desfrutar dessa terra enquanto eles fossem obedientes. Se eles não fossem obedientes, eles seriam expulsos desta terra e iriam para o exílio. O destino de Adão e Eva prefigurou o destino de Israel em sua história posterior. Os israelitas provaram ser desobedientes e assim enfrentaram as consequências do julgamento divino.” (p. 234).

O livro conta ainda com dois apêndices. No primeiro, Sailhamer mostra que não há nada de poesia em Gênesis 1 e 2. O texto é uma narrativa. O autor também argumenta que o texto não se trata de um mito, pois estes “eram altamente poéticos. A poesia era uma característica definida da mitologia antiga.” (p. 240). O autor também descarta a proposta de que o texto seria algo parecido com poesia ou uma meta-história. Para Sailhamer, o texto é narrativa histórica única. O termo que ele prefere usar é o de “mega-história”, pois o texto destes capítulos, embora históricos e literais, transcendem as nossas próprias experiências históricas. No segundo apêndice, sobre creatio ex nihilo, o autor sustenta que o verbo bará, conquanto não carregue em si evidência final de criação do nada, sempre aparece tendo Deus como seu sujeito e coisas novas sendo criadas.

        Quanto às ideias centrais de Sailhamer neste livro, passo a seguir a revisão de alguns dos seus pontos principais, apresentando objeções, na esperança de contribuir com o debate sobre o tema.

1ª Objeção: O significado de reshit

Uma das teses centrais de Sailhamer neste livro é a de que o termo hebraico reshit, princípio, de Gênesis 1.1, não indica um momento, mas um período indefinido de tempo:

“A palavra hebraica reshit, que é o termo usado para ‘princípio’ nesse capítulo, tem um sentido muito específico na Escritura. Na Bíblia, esse termo sempre se refere a um período extenso de tempo, de duração indeterminada – e não a um momento específico. Trata-se de um período de tempo que precede uma série extensa de períodos de tempo. É um ‘tempo antes do tempo’. O termo não se refere a um ponto no tempo, mas a um período ou extensão de tempo que precede uma série de eventos.” (p. 42) 

Uma pesquisa nos dicionários que trabalham com o termo reshit nos revela que a tese de Sailhamer é questionável.

William White, autor do verbete rē’shît no Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, entende que o termo traduz um ato e não um período:

“Pode-se deduzir a correta interpretação de rē’shît a partir das outras ocorrências e do testemunho de todas as versões antigas. O NT (Jo 1.1) copia o hebraico e acompanha fielmente a LXX em sua tradução de Gênesis 1.1, a primeira frase do AT. O emprego dessa raiz não deixa margem a dúvidas de que Gênesis 1.1 começa com o ato primeiro e inicial da criação do cosmos.”(2)

Bruce Waltke também diverge da visão de Sailhamer neste ponto. Para ele o verso 1 se refere a toda a narrativa da criação:

“A ousada reivindicação do versículo 1, que abarca toda a narrativa, convida o leitor à história. Sua reivindicação e convite é que no princípio Deus completou perfeitamente todo este cosmos. ‘Princípio’ se refere a todo o evento criado, os seis dias da criação, não algo anterior aos seis dias nem uma parte do primeiro dia. Embora haja quem afirme que 1.1 funciona como meramente o primeiro evento da criação, em vez de um sumário de todo o relato, a gramática comprova que tal interpretação é improvável.”(3) 

Edward J. Young também entende que o “princípio” abarca toda a obra criadora de Deus:

“Esta seção é introduzida por uma declaração geral e compreensiva sobre a criação (1:1), que afirma o fato que todas as coisas tiveram seu início através de um ato criativo de Deus (...) A obra da criação é limitada dentro de um hexameron, isto é, um período de seis dias, o qual chega a um majestoso clímax no descanso de Deus no sétimo dia.” (4)

 

2ª Objeção: Falha lógica no argumento sobre reshit

Com base em um possível sentido da palavra reshit, Sailhamer sustenta que houve um período de tempo indeterminado, anterior aos seis dias da criação, que pode ter chegado a bilhões de anos, como demonstra a ilustração de seu livro:

Para basear esta ideia de um período anterior de tempo, denominado reshit, antes da contagem normal, ele usa o caso do rei Zedequias. Assevera ele que “de acordo com Jeremias 28:1, por exemplo, o ‘princípio’ do reinado do rei Zedequias incluiu eventos que aconteceram quatro anos depois dele ter assumido o trono. Nesse caso, a NVI traduziu a palavra ‘princípio’ por ‘no início do reinado de Zedequias.”

Assim, a ilustração de seu livro para esta situação segue abaixo:

Todavia, há um equívoco na lógica de Sailhamer, pois o texto de Jeremias diz o ano e o mês em que estava o princípio do reinado de Zedequias, a saber, no ano quarto, quinto mês (Jr 28.1). Assim, princípio, no caso do Rei Zedequias, são os anos iniciais e não um período anterior aos anos. Em outras palavras, o texto bíblico não fala de um período de tempo anterior à contagem de anos, mas indica o princípio do reinado já dentro da contagem. Portanto, a melhor representação para o reinado do Rei Zedequias seria esta:


A mesma lógica se aplica a Gênesis 1 quando consideramos ser improvável e incerta a atribuição de um período anterior à semana da criação. A representação correta seria esta:


3ª Objeção: Ausência de textos prova sobre reshit

Há uma surpreendente fraqueza no argumento de Sailhamer no parágrafo a seguir, que é basilar para a sua hipótese:

“Era comum em Israel começar a contar os anos do reinado de um rei do primeiro dia do ano – isso é, o primeiro dia do mês de Nisan. Se o rei assumisse o trono antes desse dia, o que frequentemente era o caso, o tempo que antecedeu o primeiro dia do ano não era contado como parte do seu reino. Esse tempo era chamado de ‘princípio’ (reshit). Em poucos casos na Bíblia ‘o princípio’ do reinado de um rei alcançou alguns anos.” (p. 43) 

A pergunta é: Qual é a base disso? Onde está a comprovação bíblica ou histórica desta contagem anterior à contagem oficial? Onde estão os textos prova? A resposta é: Não há base bíblica, e se há base histórica, ficou com o autor, pois ele não declinou no livro.


            4ª Objeção: O uso do equivalente grego de reshit

Outro ponto que enfraquece a hipótese de Sailhamer é o uso que o Novo Testamento faz do termo arche, o equivalente grego para reshit. Em Marcos 1.1 temos: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”. Se aplicássemos a hipótese de Sailhamer a este texto teríamos que imaginar um princípio anterior ao início do evangelho de Jesus. E como ficaria Mateus 19.4 “Então, respondeu ele: Não tendes lido que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher...”? Estaria Jesus dizendo que, em um período anterior aos seis dias da criação, foi que Deus fez Adão e Eva?

 

5ª Objeção: A singularidade do termo reshit

Há outra fraqueza no argumento de Sailhamer pelo fato dele se apoiar em um possível sentido de uma palavra, sentido que é possível, mas não certo. Além disso, como Moisés é o primeiro a usar o termo reshit, há sempre a possibilidade de o seu significado ter progredido, tornando-se diferente do uso inicial. Neste sentido, Bill T. Arnold faz pertinente observação, mostrando a singularidade da construção utilizada em Gênesis 1.1: 

“A forma exata de Gênesis 1.1 (locução preposicional berē’shît) ocorre em outro lugar apenas em Jeremias, cuja construção vem sempre ligada ao mesmo subs. (ou cognatos do subs. ‘reino’, Jr 26.1; 27.1; 28.1; 49.34). Em Gênesis 1.1, entretanto, rē’shît é duplamente peculiar uma vez que é seguido pelo vb. ‘criou’e é definido. A interpretação tradicional, como oração independente (ver KJV), é um fenômeno gramatical peculiar ao Hebraico Bíblico (...) A razão de a primeira palavra em Gênesis 1.1 ser gramaticalmente peculiar e sintaticamente única pode ser porque o autor (como Isaías) estivesse descrevendo um evento único. Ao contrário do princípio de um reinado, ou do princípio da sabedoria, força ou pecado, descrever o princípio da atividade criadora de Deus requeria linguagem atípica. De maneira que, a forma e o uso de rē’šît em Gênesis 1.1 e Isaías 46:10 são únicos, mas não devem ser surpreendentes.”(5)

 

6ª Objeção: O significado de barâ’

Em sua hipótese de que “o princípio” pode abranger um espaço grande de tempo, Sailhamer acaba afetando o significado do verbo barâ’ (criou). “Desde que a palavra hebraica traduzida por “princípio” se refere a um período indefinido de tempo, não podemos dizer com certeza quando Deus criou o mundo ou quanto tempo ele levou para criá-lo.” (p. 16)

A questão é: o verbo barâ’ suporta uma criação em processo, que levaria, hipoteticamente, milhões de anos para sua realização? Segundo Bruce Waltke, não. Afirma ele, comentando Gênesis 1.1, o que segue: 

“Um verbo télico (isto é, morrer ou vender) só encontra significado no fim do processo. O termo hebraico barâ’, significando ‘criar’, só se refere a um ato completado da criação (cf. Dt 4.32; Sl 89.12; Is 40.26; Am 4.13), por isso não pode significar que, no princípio, Deus começou o processo de criar o cosmos.”(6) 

Carl Friedrich Keil também parece entender desta forma: 

 “A criação é um ato do Deus pessoal, não um processo da natureza, cujo desenvolvimento pode ser rastreado até as leis de nascimento e morte que prevalecem no mundo. Mas a obra de Deus, como descrita na história da criação, está em perfeita harmonia com as corretas noções de onipotência, sabedoria e bondade de Deus”(7)

    

7ª Objeção: Negação da inspiração verbal de Gênesis 1 e 2

A doutrina da inspiração verbal das Escrituras nos ensina que a inspiração se estendeu às palavras que foram usadas pelos escritores sacros. Louis Berkhof argumenta que... 

“Se Deus considerou necessário que eles trouxessem sua mensagem oral ao povo sob a direção do Espírito Santo, dificilmente consideraria menos essencial que seus escritos fossem salvaguardados da mesma forma. Mas não precisamos nos satisfazer com evidências presumíveis. A Bíblia, na verdade, ensina a inspiração da Palavra escrita. É verdade que nenhuma passagem pode ser citada com afirmações explícitas da inspiração de toda a Bíblia, mas a evidência é cumulativa e não deixa dúvidas quanto a esse assunto."(8) 

Seguindo esta linha de raciocínio, se as palavras utilizadas em Gênesis 1 não correspondem exatamente aos fatos, por que Deus permitiu que tais palavras fossem empregadas? Quando cremos que Deus utilizou as palavras certas no seu registro sagrado, a hipótese de Sailhamer fica devendo algumas explicações. Senão, vejamos: Se no período de tempo, que pode ter levado bilhões de anos (reshit), Deus criou todas as coisas, porque a linguagem de Gênesis 1, na semana da criação, tem tantas expressões de criação?

Se Deus, nos bilhões de anos anteriores, havia criado o sol, a lua e as estrelas, por que ele disse “Haja luz” no primeiro dia? Sailhamer explica que “sol não podia penetrar a densa neblina que cobria as águas” (p. 107). Por que, então, Deus não ordenou “Dissipe-se a neblina e entre o sol”? Por que o eloquente “Haja luz”?

Se Deus, nos bilhões de anos anteriores, já havia criado o céu, por que ele impeliu Moisés a registrar “Fez, pois, Deus o firmamento”? Não seria mais claro dizer “Nomeou de Céus o firmamento que já existia”?

Se Deus, nos bilhões de anos anteriores, já havia criado o sol, a lua e as estrelas, por que usar a linguagem “Haja luzeiros” e “Fez Deus os dois grandes luzeiros”? Por que não um texto mais claro como “Se posicionem os luzeiros já criados”?

Se Deus, nos bilhões de anos anteriores, criou “todas as criaturas que habitam a terra” (p. 107) e esta criação, no princípio, estava envolta em águas, por que ele está criando peixes agora? Se os peixes existiam há milhões de anos, por que a ordem para que agora povoassem as águas? Precisava desta ordem? Não bastava ligar as águas e eles naturalmente viriam? Da mesma forma, as aves? Não seria apenas o caso de registrar “e ordenou que as aves voassem para a terra prometida”?

Se Deus, nos bilhões de anos anteriores, criou todas as criaturas, por que o registro de que “fez Deus os animais selváticos, segundo a sua espécie, e os animais domésticos, conforme a sua espécie, e todos os répteis da terra, conforme a sua espécie”?

Estas são questões que ficam sem resposta, considerando que Deus guiou seu servo Moisés para que ele registrasse o relato fidedigno da criação, com as palavras corretas.

 

8ª Objeção: A criação apresentada como um ato e não como um processo

Sailhamer defende que, no princípio, em sua visão, período anterior à semana da criação, Deus criou todo o universo. A expressão “céus e terra” é entendida como um merisma (espécie de sinédoque) em que todo o universo é representado. 

“No caso do merisma ‘céu e terra’, os termos shamayim (céu) e êretz (terra) representam dois extremos no mundo. Ao unir esses extremos numa só expressão – ‘céu e terra’ ou ‘os céus e a terra’ – a língua hebraica expressa a totalidade de tudo o que existe. O hebraico não tem, como o inglês e o português, uma única palavra para expressar o conceito de ‘o universo’; ele o faz através de um merisma. Assim, a expressão ‘os céus e a terra’ representa ‘a totalidade do universo’. Essa expressão inclui não somente os dois extremos, os céus e a terra, mas também tudo o que eles contêm – o sol, a lua, e as estrelas; cada parte do universo visível e invisível; os mares, a terra seca, e as plantas e os animais que neles habitam.” (p. 62) 

Para o autor, Deus criou todo o universo “não num único instante, mas num longo período de tempo.” (p. 107) O problema do argumento é que vários textos bíblicos relatam a criação como um ato e não como um processo. Vejamos alguns destes textos:

“Os céus por sua palavra se fizeram, e, pelo sopro de sua boca, o exército deles.” Salmo 33.6

“Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo passou a existir.” Salmo 33.9

“Louvai-o, sol e lua; louvai-o, todas as estrelas luzentes. Louvai-o, céus dos céus e as águas que estão acima do firmamento. Louvem o nome do SENHOR, pois mandou ele, e foram criados” Salmo 148.5

“Eu fiz a terra e criei nela o homem; as minhas mãos estenderam os céus, e a todos os seus exércitos dei as minhas ordens.” Isaías 45.12

“Assim diz o SENHOR: O céu é o meu trono, e a terra, o estrado dos meus pés; que casa me edificareis vós? E qual é o lugar do meu repouso? Porque a minha mão fez todas estas coisas, e todas vieram a existir, diz o SENHOR...” Isaías 66.1,2

“Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez” João 1.3

“... pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele.” Colossenses 1.16

“Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem”. Hebreus 11.3

Como explica John Whitcomb, professor de Teologia e Antigo Testamento do Grace Theological Seminary... 

“... não há aqui nenhuma ideia de desenvolvimento gradual ˗ passo a passo, no correr das eras ˗ do cumprimento da ordem divina. De fato, é quase impossível imaginarmos qualquer intervalo de tempo na transição entre a absoluta não existência e a existência! Por igual modo, ‘Disse Deus: Haja luz, e houve luz’ (Gn 1.3). Num dado instante não havia luz em parte alguma do Universo. No instante seguinte a luz existia! Tão espetacular foi esse evento particular da criação, que o Novo Testamento o compara à subitaneidade e sobrenaturalidade da conversão espiritual: ‘Porque Deus que disse: De trevas resplandecerá luz, ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo” (2Co 4.6; cf. 5.17)(9) 

E, na mesma linha, assevera John MacArthur: 

“... quando o Novo Testamento se refere à criação (Mc 13.19; Jo 1.3; At 4.24; 14.15; 2Co 4.6; Cl 1.16; Hb 1.2, 10; Ap 4.11; 10.6; 14.7), sempre se refere ao passado, um evento realizado ˗ uma obra imediata de Deus, não um processo de evolução ainda em andamento. A prometida Nova Criação, um tema usual no Antigo e Novo Testamentos, é descrita como uma criação imediata também ˗ não um processo ao longo de muitas eras (Is 65.17). Na verdade, o modelo para a Nova Criação é a criação original (cf. Rm 8.21; Ap 21.1,5).(10) 

Percebe-se, portanto, que não há margem para pensarmos em processo de criação com milhões de anos. Os textos bíblicos apontam para criação imediata, pela Palavra de Deus.

 

9ª Objeção: A revelação bíblica apequenada

Se o mundo foi criado em um longo período de tempo, segundo o autor, bilhões de anos (p. 46), a Palavra de Deus não é mais a nossa fonte de conhecimento da obra criada, pois o que temos registrado nela equivale a menos de 1% da história do mundo.

Dentro do esquema de Criação ˗ Queda ˗ Redenção teríamos muita informação sobre o segundo e terceiro pontos, mas apenas um resumo sobre o primeiro.

Ademais, nós temos paralelos bíblicos da semana da criação. Mas, se o mundo foi criado neste longo período de bilhões de anos, com criaturas nascendo e morrendo, onde estão os textos paralelos de apoio a isso?

 

10ª Objeção: Homem e mulher no reshit

Para Sailhamer, dinossauros e todas as outras formas de vida vegetal e animal foram criadas neste período anterior aos seis dias (p. 37). Neste período Deus criou novas espécies de animais e permitiu que outras fossem extintas (p.37). Apenas os seres humanos foram criados na semana da criação (p. 158). Os seis dias não foram de criação, mas de organização. Foi o tempo em que Deus “pôs em ordem a terra, tornando-a um lugar onde o homem e a mulher pudessem habitar” (p. 158).

Em outras palavras, tudo o que existe foi criado por Deus em um período que pode ter chegado a bilhões de anos (p. 46), exceto homem e mulher, criados no 6º dia.

Qual é a fraqueza deste argumento? A Bíblia afirma, algumas vezes, a criação do homem e da mulher no princípio, o que, para Sailhamer, seria um período muito anterior. Vejamos alguns exemplos:

“Quem fez e executou tudo isso? Aquele que desde o princípio tem chamado as gerações à existência, eu, o Senhor, o primeiro, e com os últimos eu mesmo.” Isaías 41.4

“Então, respondeu ele: Não tendes lido que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher e que disse: Por esta causa deixará o homem pai e mãe e se unirá a sua mulher, tornando-se os dois uma só carne?” Mateus 19.4

“Respondeu-lhe Jesus: Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossa mulher; entretanto, não foi assim desde o princípio.” Mateus 19.8

“... porém, desde o princípio da criação, Deus os fez homem e mulher.” Marcos 10.6

 

11ª Objeção: O uso do nome Elohim

Para Sailhamer, a semana descrita em Gênesis 1 refere-se não ao início do mundo, mas à organização da terra prometida. Para ele o Éden e a terra prometida estão na mesma localidade. Ele afirma que Moisés 

“pretende traçar uma linha do Deus dos patriarcas e da Aliança do Sinai com o Deus que criou o mundo. Esse é o propósito do primeiro versículo da Bíblia: ‘No princípio, Deus criou os céus e a terra’. O Deus mencionado nesse versículo é o Deus da Aliança do Sinai. Assim, a Bíblia se inicia com a afirmação de que o Deus da Aliança criou o universo.” (p. 92) e “É suficiente dizer em Gênesis 1:1 que o Criador do mundo é Deus, o Deus bíblico. O autor demonstra a certeza de que esse Deus não será confundido com nenhum outro Deus que não o Deus dos seus antepassados e o Deus da aliança no Sinai.” (p. 112) 

A grande pergunta aqui é: Se o propósito era estabelecer ligação com a aliança por que Moisés usou Elohim, um nome genérico, e não Yahweh, nome relacionado à Aliança? Quando Moisés escreveu Gênesis ele já tinha tido a revelação deste nome. Por que não o usou?

Alguns autores trabalham com o significado do nome Elohim. Para Herman Bavinck e Louis Berkhof, por exemplo, este nome aponta para Deus como o Deus-Forte ou como objeto de temor.(11) Michael Horton enfatiza que este nome “refere-se à onipotência de Deus”.(12) Edward Young diz que “Elohim é particularmente apropriado para este capítulo [Gn 1] visto que o mesmo exalta Deus como o poderoso Criador”(13) e Bruce Waltke entende que este “nome de Deus representa sua relação transcendente à criação. Ele é a expressão quintessencial de um ser celestial." (14)

Note que nenhum autor relaciona o nome Elohim com o tema da aliança. Nossa conclusão, portanto, é que sendo Gênesis 1 o capítulo das origens do universo e não apenas da terra prometida, Moisés não se preocupou com um nome relacionado ao pacto, mas empregou um nome que aponta Deus como poderoso criador de todas as coisas.

 

12ª Objeção: Problemas com o merisma

Sailhamer sustenta que no merisma “céus e a terra” (Gn 1.1) estão incluídos o sol, a lua, os mares, a terra, as aves, os animais, enfim, tudo o que Deus fez, exceto homem e mulher.

“Assim, a expressão ‘os céus e a terra’ representa ‘a totalidade do universo’. Essa expressão inclui não somente os dois extremos, os céus e a terra, mas também tudo o que eles contêm – o sol, a lua, e as estrelas; cada parte do universo visível e invisível; os mares, a terra seca, e as plantas e os animais que neles habitam.” (p. 62) 

A sua lógica é a de que, se todo o universo está incluído, isto também abarca todos os outros elementos da criação. A objeção textual a esta ideia surge em Êxodo 20.11 quando o mesmo merisma “os céus e a terra” aparece, todavia localizando a criação destes nos seis dias da criação: “... porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou...” (Êx 20.11) A resposta do autor a esta objeção segue: 

“A menção em Êxodo 20:11 de que Deus fez (asah) os céus e a terra em seis dias pode sugerir a alguns leitores que o texto de Êxodo entende que Gênesis 1 está dizendo que Deus ‘criou o universo’ em seis dias.  Se é assim, isso não estaria contradizendo o que eu disse a respeito do significado de Gênesis 1:2-2:4? A resposta para essa questão está na distinção entre o que Êxodo 20:11 parece dizer e o que ele realmente diz. Êxodo 20:11 não diz Deus ‘fez os céus e a terra’. Antes, ele diz que Deus ‘fez os céus e a terra, o mar, e tudo que há neles’ em seis dias. Em outras palavras, essa passagem em Êxodo não usa o merisma ‘os céus e a Terra’ para descrever a obra de Deus nos seis dias.” (p. 114) 

Em outras palavras, o argumento é que “céus e terra” de Êxodo 20.11 não é um merisma porque tem mais elementos na construção da frase “... o mar e tudo o que neles há...”. Mas o que dizer de Êxodo 31.17, que é exatamente igual ao merisma de Gênesis 1.1? Vejamos: “Entre mim e os filhos de Israel é sinal para sempre; porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus e a terra, e, ao sétimo dia, descansou, e tomou alento.” (Êx 31.17)

            Assim, se Êxodo 20.11, que afirma que Deus criou os “céus e a terra” (universo) em seis dias está desqualificado, por não ser um puro merisma, Êxodo 31.17 está qualificado, sendo um “puro merisma” e afirmando que “céus e terra” foram formados em seis dias.

            Além disso, outro merisma mais próximo confirma a tese de um universo formado em seis dias, a saber, Gênesis 2.1. Ao final do sexto dia, Moisés registra: “Assim, pois, foram acabados os céus e a terra e todo o seu exército.” (Gn 2.1). Temos, portanto, a seguinte estrutura:



13ª Objeção: O significado de êretz

Sailhamer defende que a palavra êretz, de Gênesis 1.2, não significa o planeta Terra, mas apenas a terra que o povo habitaria: 

“... o sentido usual de êretz é simplesmente ‘a porção de terra seca’ e não ‘todo o planeta terra’, como na maioria das versões inglesas. Na maioria das vezes, refere-se a uma faixa ou porção de terra, num sentido local, geográfico ou político. Frequentemente significa simplesmente ‘o chão’ onde estamos pisando. Nessa acepção, é frequentemente intercambiável com outra palavra hebraica comum, adamah (o solo arável).” (p. 56) 

Vitor P. Hamilton esclarece que os dois principais usos da palavra são o cosmológico e o de designação territorial específica, todavia, em Gênesis 1, prevalece o sentido cosmológico.(15) Para Bruce Waltke, o “termo é usado de três formas no prólogo: para significar o cosmos, quando parte de uma frase composta com ‘céu’ (ver 1.1); para significar terra seca (ver 1.10); e, como usado aqui, para significar o que chamaríamos de planeta.”(16)

A tese de Sailhamer levanta outra dificuldade: Se toda a descrição de Gênesis 1 se refere apenas ao Jardim do Éden e não ao planeta todo, qual seria o propósito de Deus narrar a criação de sol, lua, divisão de águas, seres (que já estavam criados) povoando céus e águas, etc? Não é muita criação/organização apenas para um jardim?

Outra dificuldade com este ponto é que Sailhamer insiste que, no versículo 1, “terra” significa universo, por conta do merisma “céus e terra” e, no versículo 2, “terra” significa apenas a extensão do Éden. Todavia, é sempre importante lembrarmos que no texto escrito por Moisés não havia separação de versículos. O texto era corrido. Desta forma, o que temos ali é: “No princípio, criou Deus os céus e a êretz. A êretz, porém, era sem forma e vazia.” A leitura natural e simples do texto nos mostra que o segundo êretz é o detalhamento do primeiro.

 

14ª Objeção: A localização do Éden

Sailhamer defende que o “Jardim do Éden se estendia desde o ‘rio que flui por toda a terra de Cuxe’ até o ‘rio Eufrates’. Desde que a terra de Cuxe está relacionada com o Egito (Gênesis 10:6), o segundo rio, o Giom (Gênesis 2:13), era aparentemente entendido pelo autor como o ‘rio do Egito’.” (p. 78) Nesta linha de pensamento, o autor vai defender que o Jardim do Éden se localizava na própria terra prometida (p. 230).

A discussão sobre a localização do Éden é antiga. No período da Reforma Protestante, este tema foi tratado por muitos e várias especulações, algumas bastante fantasiosas, foram feitas. André Willet, sacerdote anglicano, um dos grandes expositores bíblicos do século 16, faz uma síntese das especulações: 

“Devem ser rejeitadas as visões dos que imaginam que o paraíso só pode ser entendido espiritualmente, e não como um local terreno ou físico, como Filo e Orígenes, aos quais Epifânio refutou com esta razão: onde há rios de verdade, como o Eufrates, reconhecido por todos como um dos rios do paraíso, [e] onde existem também árvores e plantas de verdade, o paraíso tem de ser um local na terra. Assim como a terra inteira não pode ser considerada como o paraíso, segundo a consideração de alguns, pois aqui se afirma que ele estava plantado no Éden, o nome de uma região específica (Ez 27.23). O mesmo ocorre com a localização do paraíso: não estava em algum lugar remoto além do oceano (Efrém); nem era um local mais alto do que toda a terra (Damasceno); nem próximo do céu (Rupert); nem na proximidade da Lua, como outros imaginaram; nem flutuando no ar, embora não tão alto quanto a Lua (Alexandre de Hales, Tostatus); nem abaixo do equador (Bonaventura). Porquanto os rios Tigre e Eufrates, que saíam do paraíso e da região do Éden, onde estava o paraíso, não estavam perto do equador. Sabe-se que estão na Ásia, não em alguma região remota e desconhecida na terra, não no espaço celeste, nem próximos à Lua. Todas essas especulações são fantasias infantis ridículas que dispensam extensas refutações.”(17) 

Martinho Lutero sustentou que, por causa do dilúvio, não sobrou qualquer vestígio do Éden e sua localização, portanto, foi perdida.(18) A impossibilidade geográfica de os quatro rios mencionados em Gênesis 2.11 terem sua origem no Éden não foi um problema para Lutero e outros reformadores, pois sustentaram que o dilúvio trouxe grandes mudanças na terra, alterando as cabeceiras e os fluxos dos rios primitivos. Calvino discordou desta opinião sustentando que, embora o dilúvio tenha causado estragos ao mundo, a terra ainda era a mesma. Para Calvino, a localização que Moisés deu ao Éden baseada nestes rios não foi geograficamente exata, mas, em seu julgamento, Moisés “acomodou a sua topografia à capacidade da sua época”.(19) Esta opinião de Calvino não representa dúvida quanto à inspiração bíblica, mas apoia-se no argumento da linguagem fenomenológica das Escrituras, que explica o registro de eventos não do ponto de vista científico, mas da perspectiva do escritor, o qual registra o fenômeno que se apresenta diante de seus olhos.

Autores contemporâneos discordam da tese de Sailhamer. Franz Delitzsch, por exemplo, inclina-se para a localização nas terras da Armênia, todavia segue a ideia de que as mudanças sofridas por conta do dilúvio tornaram a real posição incerta.(20) H. C. Leopold também entende que, embora a localização seja incerta, tudo aponta para os planaltos da Armênia.(21) Bruce Waltke, por sua vez, discorda das localizações sustentando que a identificação de Pisom e Giom “é problemática. Havilá está na Arábia; e assim Pisom seria identificado com a Arábia, possivelmente o Golfo Pérsico. Em conformidade com Gênesis 10.8, Cuxe estaria no Irã Ocidental. Seria Giom um dos rios ou canais da Mesopotâmia?”(22) Carl Schultz, professor de Antigo Testamento no Houghton College, explica que “Conquanto se possa identificar os rios Tigre e Eufrates, existe uma incerteza generalizada quanto aos outros dois rios, o Pisom e o Giom. Entretanto, uma área próxima à foz dos rios Tigre e Eufrates, no Golfo Pérsico, parece bastante possível.”(23)

Portanto, considerando que Sailhamer apresenta sua tese apoiada apenas em suposições, pois nenhum estudioso, até hoje, conseguiu demonstrar a localização exata do Éden, é temerário aceitar suas conclusões.    

 

15ª Objeção: O significado de tohu vavohu

Sailhamer defende que os seis dias de Gênesis 1 não se referem à criação do mundo, mas à organização da terra prometida que seria dada aos judeus. Um dos seus argumentos principais para apoiar esta tese está na expressão tohu vavohu, traduzida pela maioria das versões como “sem forma e vazia”. Sailhamer sustenta que a tradução está errada, pois foi influenciada pela cosmologia da época: 

“Nenhum conjunto de palavras pode caracterizar o papel dos tradutores da Bíblia em moldar nossa compreensão de Gênesis 1 e 2 mais do que os termos “sem forma e vazia” (tohû vavohû). A expressão foi escolhida não tanto porque se constituía na melhor tradução das palavras hebraicas, mas porque ela poderia ser usada para identificar ‘os céus e a terra’ em Gênesis 1:1 com o caos primordial. Todavia, o seu sentido comum através das Escrituras Hebraicas sugere que a expressão deve ser entendida como ‘deserto, desprovido de vida humana’. É aquela extensão de ‘terra’ que não é ‘boa’ para seres humanos. A questão para o autor bíblico era que a ‘terra’ precisava de uma preparação adicional antes que Deus pudesse colocar seres humanos habitando nela. Uma vez que ocorresse essa preparação, a ‘terra’ não seria mais um deserto, desprovido de vida humana, mas poderia ser declarada ‘boa’ para o homem e para a mulher. De fato, poderia ser dito que ela se tornaria um regular Jardim do Éden.” (p. 72) 

Segundo Bruce Waltke, tohu vavohu é apenas “antônimo de ‘céus e terra’, significando algo não-criado ou desordenado (Jr 4.23-27).(24) W.H. Griffith Thomas, teólogo inglês do século passado, traz uma importante explicação sobre o assunto: “parece que os adjetivos ‘informe’ e ‘vazia’ são a chave para entender a estrutura literária do capítulo. O registro dos três primeiros dias se referem aos céus e à terra receberem a sua ‘forma’ e o registro dos três últimos dias ao enchimento de seu ‘vazio’." (25)

O professor de Antigo Testamento do Seminário Teológico Betel (EUA), Dr. Ronald F. Youngblood, seguiu a mesma linha de interpretação de Griffith Thomas atribuindo a ação de Deus em dar forma ao mundo nos três primeiros dias e povoá-los nos outros três. Em seu comentário sobre o livro de Gênesis ele apresenta a seguinte tabela (26):


Considerando a contribuição dos eruditos acima, a nossa conclusão é que Sailhamer, quando sugere que a melhor tradução para tohu vavohu seria “deserta e inabitável” (p. 71), tem razão em parte apenas. De fato, como foi visto, vavohu compreende o sentido de “deserto”, “vazio”, “sem habitação”, todavia, o sentido de tohu aponta para algo sem forma mesmo, e se enquadra melhor no todo de Gênesis 1.


16ª Objeção: O significado de ‘âbad e shâmar

            Em Gênesis 2.15 temos “Tomou, pois, o SENHOR Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar”. Sailhamer sustenta que esta tradução está incorreta. Em sua opinião a melhor tradução seria que o homem foi colocado no jardim para “adorar e obedecer”: 

“... uma tradução mais adequada do texto hebraico pode ser encontrada em alguns manuscritos mais antigos: que o homem foi colocado no jardim ‘para adorar e obedecer’. A vida do homem no Jardim devia ser caracterizada por adoração e obediência. Ele devia ser um sacerdote, não meramente alguém que cultivaria e guardaria o Jardim.” (p. 82)           

            Para o autor este ponto é importante para que seja feita a ligação entre o Éden e a terra da promessa, uma das teses centrais do livro: 

“O relato do preparo do Jardim do Éden por Deus ocupa um lugar importante no sentido mais amplo de Gênesis 1 e 2. É central no relato o conceito de que o homem e a mulher foram criados para adorar a Deus e obedecê-lo. Eles foram criados para desfrutar da comunhão divina. O escritor do Pentateuco vê o Jardim como um tipo de Tabernáculo primordial dentro da terra prometida, um lugar onde Deus e o homem podiam se encontrar. Por isso, muita atenção está sendo dada à aparência e à localização do Jardim.” (p. 83) 

Todavia, o argumento tem sua fraqueza. Primeiro, porque vários estudiosos dão apoio à tradução mais tradicional, “o cultivar e o guardar”, senão vejamos:

            - João Calvino: “Moisés acrescenta agora que a terra foi dada ao homem com esta condição, que ele ocupasse a si mesmo com o seu cultivo (...) Moisés adiciona que a custódia do jardim foi incumbida a Adão...”(27)

            - Franz Delitzsch: “... a terra deveria ser cuidada e cultivada pelo homem, de modo que, sem o cultivo humano, plantas e até mesmo as diferentes variedades de grãos cresceriam selvagens. Assim, o cultivo seria preservado (שׁמר guardar)...”(28)

            - H. C. Leopold: “Servir, ‘abhadh, é usado aqui transitivamente no sentido de ‘cultivar’. O segundo verbo shamar, geralmente significa ‘assistir’ ou ‘guardar’ é tomado aqui no sentido mais leve de "manter".(29)

            - Horatius Bonar: “Tendo preparado o jardim, o Senhor Deus tomou o homem e o colocou nele, para que pudesse cultivá-lo e guardá-lo.”(30)

            - James Boice: “Agora ele é colocado em um ambiente onde sua tarefa é "trabalhar [o chão] e cuidar dele" (2.15)”(31)

- Bruce Waltke: “para cuidar dele e cultivá-lo (...) O último termo inclui guardar o jardim contra a usurpação de Satanás"(32) 

Nota-se que, salvo melhor juízo, nenhum exegeta moderno acompanha Sailhamer nesta hipótese de tradução. O mesmo ocorre com as traduções bíblicas da atualidade. Além disso, a mesma palavra para “cultivar” (‘âbad) de Gênesis 2.15, que o autor defende deveria ser traduzida por “adorar”, é traduzida em 2.5, 3.23, 4.2 e 4.12 por “lavrar”.

De fato, ‘âbad também tem sentido de adoração, pois Deus estabeleceu que o culto é serviço. Todavia, a primeira vez que a palavra é traduzida neste sentido encontra-se em Êxodo 3.12 “... servireis a Deus neste monte”.

Quanto à palavra shâmar, traduzida em Gênesis 2.15 como “guardar”, o autor defende que deveria ser traduzida por “obedecer”. Todavia, a segunda ocorrência da palavra refere-se à espada de Deus que “se revolvia para guardar o caminho da árvore da vida” (Gn 3.24) e a terceira ocorrência aparece na pergunta de Caim a Deus “Acaso sou eu guardador de meu irmão?” (Gn 4.9)

Ademais, a opção de tradução por “adorar e obedecer” ao invés de “cultivar e guardar” traria implicações teológicas importantes na Teologia Bíblica, especialmente no tema do Mandato Cultural.

 

17ª Objeção: A Influência das cosmologias

Temos aqui a tese central de Sailhamer, refletida no título do livro. Ele explica, logo no início da obra, que escolheu este título “Gênesis Desatrelado” por entender que a nossa compreensão do livro sacro pode estar presa, atrelada, a conceitos errados advindos de algumas cosmologias. Para ele “a história da interpretação de Gênesis 1 e 2 é frequentemente pouco mais que a história do relacionamento entre a perspectiva bíblica da criação e a perspectiva cosmológica em desenvolvimento do mundo ocidental.” (p. 178)

Como um dos fatores importantes desta influência da cosmologia sobre a interpretação bíblica, ele destaca a versão King James. Ele mostra como esta versão foi influenciada pelo pensamento grego de seus tradutores e como, por consequência, esta versão vem distorcendo a interpretação correta de Gênesis 1 e 2 durante gerações: 

“A versão bíblica King James, por exemplo, influenciou extraordinariamente o modo dos leitores de fala inglesa lerem a Bíblia hoje. Felizmente, a versão King James é uma tradução excelente, feita por distintos eruditos. Mas, fundamentalmente, eles meramente seguiram seus predecessores nos assuntos fundamentais. Um exemplo é o significado do termo traduzido por ‘earth’ (a Terra), termo que examinamos mais de perto no capítulo 4. O uso da palavra ‘earth’ (a Terra) na versão King James de Gênesis 1:2 dá ao leitor a impressão de que os eventos descritos nesse capítulo estão relacionados com o mundo inteiro.” (p. 199) 

No exemplo citado por Sailhamer atribui-se à versão bíblica King James parte da culpa no erro de interpretação de Gênesis 1.2 por traduzir êretz por “earth" (o planeta Terra) e não por “land” (terra, solo). Todavia, como explicar que, no Brasil, as pessoas têm a mesma compreensão de que a “terra” de Gênesis 1.2 se refere ao planeta Terra e não ao solo, mesmo constando em nossas traduções “terra” com letra minúscula e não “Terra”, o planeta? Não seria porque a leitura natural de uma pessoa simples, sem influências ou pressupostos naturalistas ou evolucionistas, a conduz à compreensão de que a “terra” do verso 1 e 2 são a mesma coisa? Conforme destacamos acima, na 13ª objeção, é importante nos lembrarmos de que o texto escrito pelas mãos de Moisés não continha separação e numeração de versículos – era um texto corrido. Assim, o fluxo da leitura era: “No princípio, criou Deus os céus e a terra (êretz). A terra (êretz), porém, era sem forma e vazia.” A leitura natural e simples do texto sempre propiciou a compreensão de que o segundo êretz é o detalhamento do primeiro.

Em outra parte, Sailhamer escreve que “com Newton o universo de repente tornou-se maior – na verdade, enorme. O universo de Newton era tão gigantesco que ameaçava produzir uma ruptura na perspectiva tradicional de Gênesis 1 e 2.” (p. 193) Esta afirmação implica que o entendimento dos leitores anteriores a Newton era o de um universo pequeno. Todavia, em primeiro lugar, isso não combina com alguns versículos bíblicos que explicitam a grandeza da criação do mundo, tais como:

- Jó 5.9: “... ele faz coisas grandes e inescrutáveis e maravilhas que não se podem contar...”

- Jó 9.10: “... quem faz grandes coisas, que se não podem esquadrinhar, e maravilhas tais, que se não podem contar.”

- Salmo 8.3: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabeleceste, que é o homem, que dele te lembres? E o filho do homem, que o visites?”

- Salmo 92.5: “Quão grandes, SENHOR, são as tuas obras! Os teus pensamentos, que profundos!”

- Salmo 104.25: Eis o mar vasto, imenso, no qual se movem seres sem conta, animais pequenos e grandes.

- Salmo 111.2: “Grandes são as obras do SENHOR, consideradas por todos os que nelas se comprazem.”

- Provérbios 25.3: Como a altura dos céus e a profundeza da terra, assim o coração dos reis é insondável.

- Apocalipse 15.3: “e entoavam o cântico de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus, Todo-Poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei das nações!”

Em segundo lugar, se o “universo de Newton era tão gigantesco que ameaçava produzir uma ruptura na perspectiva tradicional de Gênesis 1 e 2” e Newton viveu entre 1642 – 1727, como explicar algumas afirmações de teólogos anteriores a ele? Agostinho, por exemplo, viveu entre 354 – 430 e fez afirmações sobre a imensidão do universo: 

“A vós, ó Vida da minha vida, também vos imaginava como um Ser imenso, penetrando por todos os lados a imensidão do Universo e alastrando-se vós fora dele, por toda parte, através das imensidades sem limites, de tal modo que a terra, o céu e todas as coisas vos continham e todas elas se acabavam em vós, sem, contudo, acabardes em parte alguma (...) Perguntei pelo meu Deus à imensidão do Universo, e respondeu-me: ‘Não sou eu, mas foi ele quem me criou”.(33) 

O mesmo pode ser dito sobre João Calvino, que viveu de 1509 a 1564:

“... refletimos de quão grande Artífice foi a tarefa de ordenar e ajustar em tão maravilhoso concerto essa multidão de estrelas que se espalha pelo céu, que não se pode imaginar nada mais belo em aparência; a umas de tal modo inseriu e fixou em suas posições, que não se podem delas afastar; a outras concedeu mais livre curso, todavia em moldes tais que, vagueando, não vão além do espaço assinalado; regulou o movimento de todas de modo que nessa base se meçam os dias e as noites, os meses, os anos e as estações do ano, e além disso reduz a tal proporcionalidade essa desigualdade dos dias que observamos quotidianamente, que nada encerre de confusão. Assim também, quando atentamos para o poder em sustentar a tão ingente massa, em governar a tão célere convolução da máquina celeste, e outras coisas semelhantes.”(34) 

Concluímos esta objeção reconhecendo que as cosmologias podem exercer influência sobre o pensamento teológico da época, todavia, não de forma absoluta. O próprio autor dá exemplos de intérpretes judeus e de criacionistas que não se dobraram aos ditames científicos. Por outro lado, é difícil crer na tese do autor de que a igreja está há alguns séculos interpretando de modo incorreto Gênesis 1 e 2. Este pensamento coloca a ciência em vantagem no conhecimento relativo à criação e enfraquece textos como Mateus 11.25 e 1 Coríntios 1.19-21.

 

18ª Objeção: Promete intérpretes de peso para a sua posição e não cumpre

            Logo no início da obra, Sailhamer anuncia que sua nova leitura de Gênesis 1 e 2 é “desenvolvida com base no trabalho de talentosos e capazes intérpretes do passado” (p. 16). Mais adiante explica que suas conclusões “estão solidamente fundamentadas no texto propriamente dito e têm muito em comum com o trabalho realizado pelos acadêmicos bíblicos de épocas passadas.” (p. 38) No final do livro o autor apresenta os intérpretes anunciados: Ibn Ezra e Rashi, dois estudiosos judeus medievais, e John Lightfoote, um dos membros da Assembleia de Westminster. Conquanto os nomes sejam de homens eruditos e capazes, fica-se com a impressão de que faltaram nomes mais conhecidos para apoio de suas teses.

 

19ª Objeção: Impressão de não crer na inspiração de Moisés

Embora o autor declare crer na inspiração das Escrituras e afirme que Moisés “foi movido pelo Espírito a escrevê-lo exatamente da forma como o temos hoje na Bíblia.” (p. 26), por vezes, o autor nos passa a impressão de que Gênesis é um livro mais humano que divino. Ora, é sabido que a inspiração nem sempre foi mecânica, mas, em sua maioria foi dinâmica (ou orgânica) o que torna a Bíblia um livro divino e humano. Divino porque toda a Escritura é inspirada por Deus (2Tm 3.16) e humano porque Deus escolheu homens e os inspirou para registrar a sua vontade (2Pe 1.21). Além disso, estes homens inspirados registraram a Palavra no uso de suas próprias mentes, aptidões e talentos. Deus não anulou suas personalidades, mas dirigiu-os supervisionando a escrita. Esta é a razão porque encontramos diferentes estilos de escrita nas Escrituras. Todavia, Sailhamer por vezes faz algumas afirmações que passam a impressão de que a Bíblia é um livro mais humano que divino. Vejamos:

“Um dos principais propósitos deste livro é mostrar que quando Gênesis 1 e 2 são entendidos como eu creio que Moisés quis que eles fossem entendidos, quase todas as dificuldades que deixam perplexos os leitores modernos desaparecerão instantaneamente.” (p. 15)

“Algumas evidências de peso serão apresentadas para construir um retrato coerente, e eu espero, adequado do que Moisés pretendeu nos dizer em Genesis 1 e 2.” (p. 17)

“Se as perspectivas aqui apresentadas acuradamente refletem o que o autor de Gênesis 1 e 2 tinha em mente quando ele mesmo escreveu há tanto tempo atrás, então eu oro para que Deus as use para engrandecer Sua Palavra e torná-la clara.” (p. 19)

“Eu faço essas perguntas, porque creio firmemente na possibilidade de nós termos atribuído a essa pequena palavra um significado que Moisés nunca teve a intenção de atribuir.” (p. 41)

“O que realmente Moisés quis dizer quando escolheu usar particularmente esse termo? Que tipo de ‘princípio’ Moisés tinha em mente? É possível que tenhamos entendido mal o que ele pretendeu comunicar?” (p. 42)

“O autor de Gênesis era um mestre habilidoso no uso das palavras. Ele escolheu suas palavras com cuidado, e as usou com precisão. Não foi por acidente ou mera coincidência que ele escolheu a palavra hebraica reshit para iniciar sua narrativa dos atos relacionais divinos com o mundo e com a humanidade.” (p. 48)

Quem escolheu as palavras: Moisés ou Deus? É certo que no processo de inspiração dinâmica o escritor fazia pesquisas e uso de palavras, todavia, da forma como Sailhamer se expressa fica, de fato, a impressão de que a balança está pesando mais para o elemento humano.

 

20ª Objeção: Incômodo com a ciência

Diversas vezes no decorrer da obra Sailhamer demonstra seu incômodo em eventualmente estar contrário ao estabelecido pela ciência moderna. Ele diz, por exemplo, que “muitos cristãos têm sentido uma ruptura entre a lealdade à Bíblia e o reconhecimento das descobertas da ciência moderna – uma ruptura que não é nem necessária, nem útil.” (p. 15); que os argumentos citados na Parte Dois do livro “nos capacitam a viver em paz com as descobertas da ciência moderna.” (p. 18), e que seu ponto de vista “se ajusta bem com o que a ciência moderna nos diz sobre os primórdios da vida humana.” (p. 37)

Embora Sailhamer afirme que os dias de Gênesis 1 são períodos de 24 horas, crê que o mundo foi feito em bilhões de anos (p. 46) e isso é positivo, para ele, porque resolve o conflito entre Bíblia e ciência. Bem no final do livro ele deixa clara a sua posição confortável com relação à ciência moderna: 

“Mas onde isso nos coloca em relação à ciência moderna? Devemos dizer aos nossos filhos quando os enviarmos à escola que o universo foi criado em seis dias e que sol, a lua e as estrelas não estavam formados até o quarto dia? Devemos dizer a eles que isso tudo aconteceu a apenas alguns milhares de anos atrás? Devemos dizer a eles que a arca de Noé estava cheia de todos os tipos de mamíferos antigos, dinossauros, e pterossauros que algum dia existiram? Certamente devemos, se isso é o que a Bíblia realmente ensina. Mas a questão que eu tentei levantar neste livro é: realmente a Bíblia ensina isso? Desde que você chegou ao epílogo, eu presumo que você entendeu que eu não creio que foi assim.” (p. 233)           

Este incômodo com a ciência não deveria existir em cristãos. Primeiro porque a ciência moderna tem demonstrado carência de observação em algumas de suas descobertas. Por definição, a ciência é um corpo de conhecimentos sistematizados adquiridos via observação. Phillip Johnson, no livro “Darwin no banco dos réus” afirma que “a metodologia científica existe sempre que teorias são submetidas a rigoroso exame empírico.”(35) O exame empírico se baseia na experiência e observação. Assim, descobertas científicas deveriam ser verificadas, observadas. Ocorre que hoje isto não acontece em algumas áreas da ciência. A teoria da Evolução, por exemplo, nunca foi observada e verificada. E isso por uma razão simples. Ela pressupõe milhares de anos para a geração de uma nova espécie. Outra teoria sem comprovação é a do Big Bang, que afirma o início do universo. Estas teorias, não comprovadas, nos revelam que a ciência é, por vezes, incerta. Assim, o que é verdade hoje pode não sê-lo amanhã.

Em segundo lugar, cristãos não deveriam ficar incomodados com a ciência moderna porque o ramo da ciência que investiga as origens da vida humana e do universo é naturalista, totalmente sem Deus. Como diz o Salmo 10.4, “o perverso, na sua soberba, não investiga; que não há Deus são todas as suas cogitações”. Cristãos e defensores do Design Inteligente têm sido perseguidos, especialmente nos Estados Unidos, por conta de suas convicções. O documentário norte-americano “Expelled: No Intelligence Allowed” retrata isto com propriedade.

Em terceiro lugar, a Palavra de Deus não é um livro científico, porém, não erra em suas afirmações. Em algumas partes, aliás, a Bíblia antevê fatos bem antes que a ciência, como em Jó 26.7, por exemplo, quando é dito que Deus “faz pairar a terra sobre o nada”. Entre o livro da natureza (revelação geral) e o livro escrito (revelação especial) devemos ficar com o segundo. É certo que os dois foram escritos por Deus, porém, o segundo é mais detalhado. Sobre isso escreveu John Byl, professor de Matemática na Trinity Western University, Canadá, doutor em Astronomia na University of British Colombia: 

“Desde o início da revolução científica a noção de que Deus tem revelado verdades em dois livros, as Escrituras e a natureza, foi amplamente usada como meio de reconciliação entre a ciência e as Escrituras. Historicamente, contudo, a doutrina dos dois livros tem conduzido a um declínio da autoridade bíblica. Uma vez admitindo a premissa de que algumas teorias científicas podem ser tomadas como verdades divinas, estaremos, em essência, permitindo que o ‘livro da ciência’ modifique as Escrituras. Na falta de um critério válido através do qual possamos inventar e detectar teorias corretas, nossa leitura da Bíblia estará para sempre numa condição de fluxo, à mercê das ondas das teorias científicas correntemente em voga."(36)

 

Conclusão

Concluo com uma nota positiva: o estilo humilde do Dr. Sailhamer. Em todo o livro ele apresentou seus argumentos de maneira cuidadosa e sem ser dogmático. Já no início deu o tom de sua proposta:

“Minha intenção nesse livro não é dar um puxão de orelhas em outros evangélicos, nem condenar ou retratar injustamente aqueles de quem discordo. Não é bom estar certo com uma atitude errada. Minha esperança é de que esse livro traga uma luz útil sobre um problema antigo e difícil. Se as perspectivas aqui apresentadas acuradamente refletem o que o autor de Gênesis 1 e 2 tinha em mente quando ele mesmo escreveu há tanto tempo atrás, então eu oro para que Deus as use para engrandecer Sua Palavra e torná-la clara. Se eu estou errado, então eu oro para que minhas perspectivas bem intencionadas não causem dano e caiam rapidamente no esquecimento.” (p. 19) 

Em minha opinião, como demonstrado no trabalho, Sailhamer está equivocado em suas ideias, todavia, é bonito ver homens com tamanho preparo submetendo suas ideias ao crivo dos pares com esta humildade.


NOTAS:

(1) Para uma lista de todas as publicações do Dr. Sailhamer acesse http://www.chedspellman.com/2009/12/writings-of-john-sailhamer-online.html

(2) WHITE, William. rē’shît: In: HARRIS, R. Laird, ARCHER, Gleason L., WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, 1998, p. 1.389.

(3) WALTKE, Bruce K. Comentário de Gênesis. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010, p. 67.

(4) YOUNG, Edward J. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, 1964, p. 54, 55.

(5) ARNOLD, Bill T. tyviare: In: VANGEMEREN, Willem A. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 1.022.

(6) WALTKE, Comentário de Gênesis, p. 67, n. 15.

(7) KEIL, C.F e DELITZSCH, F. Biblical Commentary on the Old Testament. Michigan: Grand Rapids, 1951, p. 39.

(8) Ver BERKHOF, Louis. Princípios de Interpretação Bíblica. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 37.

(9) WHITCOMB, John C. A Terra… de Onde Veio? São José dos Campos: Editora Fiel, 1992, p. 18.

(10) MACARTHUR, John. Criação ou Evolução. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 23.

(11) BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2012, p. 141 e BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 48.

(12) HORTON, Michael. A Lei da Perfeita Liberdade. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2000, p. 91.

(13) YOUNG, Introdução ao Antigo Testamento, p. 55.

(14) WALTKE, Comentário de Gênesis, p. 67.

(15) HAMILTON, Vitor P. ’erets In: HARRIS, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, p. 124.

(16) WALTKE, Comentário de Gênesis, p. 68.

(17) WILLET, André. Comentário sobre Gênesis 2.8-9. In: THOMPSON, John L., GEORGE, Timothy, MANETSCH, Scott M. Comentário Bíblico da Reforma: Gênesis 1-11. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2015, p. 136.

(18) LUTERO, Martinho. Lições Sobre Gênesis 2.11. In: THOMPSON, Comentário Bíblico da Reforma: Gênesis 1-11, p. 143.

(19) CALVIN, John, A Commentary on Genesis. London: The Banner of Truth Trust, 1965, v. 1, p. 119, (2.10).

(20) DELITZSCH, Franz. New Commentary on Genesis. Oregon: Wipf & Stock, 2001, p. 133.

(21) LEOPOLD, H.C. Exposition of Genesis. London: Evangelical Press, 1972, p. 126, (2.14).

(22) WALTKE, Comentário de Gênesis, p. 102.

(23) SCHULTZ, Carl.‘ēden In: HARRIS, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, p. 1079.

(24) WALTKE, Comentário de Gênesis, p. 69.

(25) THOMAS, W. H. Griffith. Apud YOUNGBLOOD, Ronald F. tōhû In: HARRIS, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, p. 1631.

(26) YOUNGBLOOD, Ronald F. The Book of Genesis: An Introductory Commentary. Michigan: Baker Book House, 1991, p. 24.

(27) CALVIN, A Commentary on Genesis, v. 1, p. 125, (2.15).

(28) DELITZSCH, New Commentary on Genesis, p. 133.

(29) LEOPOLD, Exposition of Genesis, p. 126, (2.15).

(30) BONAR, Horatius. Thoughts on Genesis. Michigan: Kregel Publications, 1979, p. 72, (2.15).

(31) BOICE, James Montgomery. Genesis: An Expositional Commentary. Michigan: Ministry Resources Library, 1982, v. 1, p. 104, (2.15).

(32) WALTKE, Comentário de Gênesis, p. 103.

(33) AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 142, 238.

(34) CALVINO, João. As Institutas. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2006, p. 176.

(35) JOHNSON, Phillip E. Darwin no Banco dos Réus. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2008, p. 150.

(36) BYL, John. Deus e Cosmos: Um Conceito Cristão do Tempo, do Espaço e do Universo. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 26.

September 3, 2020

O Problema com a "Adoração Eletrônica" é que ela gera a "Adoração Platônica" - N.T. Wright


Em países como o meu, onde igrejas (dentre outros locais de culto, incluindo sinagogas e mesquitas) foram fechadas, por razões completamente compreensíveis, há o perigo de enviarmos acidentalmente o sinal errado para o mundo inteiro. Nos últimos trezentos anos, o mundo ocidental tem considerado a ‘religião’ (a própria palavra mudou de significado para acomodar esse novo ponto de vista) como um assunto privado, ‘o que alguém faz no particular’. A fé cristã como um todo foi reduzida, na mentalidade pública, a um movimento ‘particular’ no sentido de que, segundo muitos alegam, não deveria ter lugar algum na vida pública. Assim, ainda posso comprar uma bebida em algum mercado ou loja de esquina; mas não posso me sentar no velho templo da igreja, do outro lado da rua, e participar de um culto de oração. Nesse caso, a adoração se torna invisível; e o fechamento de igrejas parece conspirar com isso. Ao dizer que aboliremos temporariamente o culto corporativo e nos reuniremos com outras pessoas apenas em cultos on-line, realizados ao vivo da sala de estar da casa do ministro, podemos dar a entender que, de fato, não passamos de um grupo de indivíduos com ideais semelhantes em busca de um passatempo arcano particular. Nesse contexto, o problema com a ‘adoração eletrônica’ é que ela acaba se transformando em uma ‘adoração platônica’, isto é, ‘sozinhos com todo o mundo’. Visto que já existem pressões culturais nessa direção, importa-nos reconhecer o perigo.

Felizmente, ao que tudo indica, muitas pessoas que ‘foram para a igreja’ nessa realidade virtual não teriam participado de um culto em algum templo físico; tal desenvolvimento é motivo de regozijo. No entanto, nossas igrejas têm sido há séculos lembretes físicos e audíveis – em ruas movimentadas e em lugares afastados, nos campos e nas cidades – de um estilo de vida que a modernidade ocidental tentou sufocar. Sem dúvida, temos aprendido muitas coisas neste tempo de ‘exílio forçado’ – é exatamente isso que estamos enfrentando, um exílio – mas devemos orar pelo dia em que nossos templos funcionarão, no contexto da nossa sociedade, da forma como foram planejados.

Em outras palavras, estou preocupado com o modo pelo qual a Igreja, deparando-se com uma grande crise, seguiu docilmente o parecer de uma liderança secularizada. Do ministério de Jesus em diante, o sinal da nova criação tem sido a presença restauradora do próprio Jesus e, acima de tudo, sua morte e ressurreição. A realização do culto público ao Deus Triúno – observadas todas as medidas de segurança – foi sempre parte importante do envio desse sinal ao mundo observador. Quando Paulo diz aos filipenses: ‘Alegrem-se sempre no Senhor’, a palavra ‘alegre-se’ não significa apenas ‘sinta-se muito feliz no seu interior’. Significa: ‘saia para a rua e comemore!’ – com o devido distanciamento, claro. Afinal, diversas outras pessoas estão fazendo isso. Nos dias de Paulo, havia muitas procissões, festas de rua e cerimônias religiosas acontecendo em público, de modo que todos podiam ver o que estava acontecendo. Paulo queria que os seguidores de Jesus fizessem a mesma coisa. Na Bíblia, a palavra para ‘alegria’ conota algo que você pode ouvir a uma certa distância. Veja, por exemplo, Neemias 12:43.

Pego-me entre esses dois pontos de vista; e ao que me parece, ambos estão corretos. Entendo perfeitamente que devemos ser responsáveis e escrupulosamente respeitosos. Fico alarmado com relatos de pessoas devotas, mas mal orientadas, que ignoram regulamentos de segurança por acreditarem que, como cristãs, serão automaticamente protegidas contra doenças ou que, como ouvi alguém dizer na televisão, ‘você está seguro dentro da igreja porque o Diabo não pode entrar lá’. (Queria dizer à pessoa que ouvi: ‘Acredite-me, senhora, sou bispo: o Diabo entra e sai de lá, como qualquer outra pessoa’). É o tipo de superstição que traz má reputação à fé cristã. Semelhantemente, debates sobre fechar a porta das igrejas podem facilmente gerar controvérsias paralelas – entre aqueles, por exemplo, para os quais o edifício e todos os seus elementos têm sido parte vital de sua espiritualidade e aqueles aos quais essas coisas são irrelevantes, visto que qualquer pessoa pode adorar a Deus em qualquer lugar. Ambos os lados podem aprender com a crise atual, e fazemos bem em acolher uns aos outros em oração e amor.

Parte da resposta a essa oração, como muitos já perceberam, pode ser o discernimento de que o presente momento é um tempo de exílio. Encontramo-nos ‘junto aos rios da Babilônia’, confusos e sofrendo a perda da nossa vida normal. ‘Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estrangeira?’ (Salmos 137:4) se traduz facilmente em: ‘Como posso sentir a alegria de participar da Ceia do Senhor olhando para a tela de um computador?’. Ou então: ‘Como posso celebrar a entronização de Jesus e o derramamento do Espírito Santo sem a companhia dos meus irmãos e irmãs?’

Evidentemente, parte da ideia de Salmos 137 é precisamente o fato de o poema ser, ele próprio, uma ‘canção do Senhor’. Eis a ironia: a escrita de um poema cujo tema é a incapacidade de escrevê-lo. Assim, parte da disciplina do lamento pode ser transformar o próprio lamento em uma canção de tristeza. Talvez seja uma das formas pelas quais somos chamados no momento a sermos pessoas de lamento – lamentando até o fato de não conseguirmos lamentar da forma como normalmente preferiríamos. Devemos explorar essas questões, e as novas disciplinas exigidas de nós, da melhor forma que pudermos. Pode ser que isso também deva ser aceito como parte da vida na Babilônia. Talvez devamos, como nos orientou Jeremias, estabelecer-nos nesse regime e ‘procurar a paz da cidade’ onde estamos [cf. Jr 29:7, ARC]. Todavia, não devemos fingir que é onde queremos estar. Não nos esqueçamos de Jerusalém, nem decidamos permanecer no exílio.

É a esse respeito que as igrejas (e outros grupos como líderes e pensadores judeus) necessitam urgentemente refletir e orar quanto ao que pode e deve ser dito, e sobre como dizê-lo de tal forma que os líderes do mundo ocidental possam ouvir e agir com sabedoria. Com esse fim em mente, abordamos a seção final deste capítulo.”

N. T. Wright, Deus e a Pandemia (RJ: Thomas Nelson, 2020), p. 126-130.

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